Logótipo Próximo Futuro

"Vou lá visitar pastores": uma análise da obra de Ruy Duarte de Carvalho

Publicado31 Jul 2015

Etiquetas Vou lá Visitar Pastores ruy duarte de carvalho

"Vou lá Visitar Pastores", espectáculo de Manuel Wigorg que se apresenta no Próximo Futuro em Setembro, mais de uma década depois da sua estreia na Culturgest, baseia-se no livro homónimo de Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010), escritor, cineasta e antropólogo. A obra, publicada pela Cotovia em 1999, é um percurso angolano em território Kuvale e aborda esta sociedade pastoril do Sudoeste de Angola. O espectáculo contará com um conjunto de desenhos e fotografias do próprio autor. A investigadora brasileira Rita Chaves escreveu sobre o livro, em texto publicado no site Buala.

Numa tentativa de síntese, podemos definir essa narrativa como um relato apurado, baseado em longo trabalho de pesquisa sobre os kuvale, povo pastoril que vive na região sul de Angola e que vem sendo objeto das pesquisas antropológicas realizadas por Ruy Duarte de Carvalho desde o início dos anos 90. No texto, estão os dados que a etnografia ajuda a selecionar, sistematizar e classificar e, com isso, revelar lógicas que não são as nossas, decifrando um universo de percepções, sentimentos, causalidades e relações que definem um outro modo de estar no mundo. Dividido em quatro partes – Memórias, colocações / Viagens e encontros: figuras / Etnografias, torrentes / Decifrações, desafios -, o livro traz-nos ainda um post-scriptum e um glossário, além de ilustrações que participam do esforço do autor para nos apresentar um outro mundo.

O título da própria obra e de cada uma de suas partes antecipa ao leitor a inquietação confirmada a cada página desse que pode ser visto, afinal, como um livro incatalogável. Após o fim da leitura, vamos continuar sem saber exatamente como definir esse livro que habita a estante de antropologia e não ficaria mal localizado na de literatura. É certo que temos um ensaio antropológico, acurado, rigoroso, responsável; contudo, ao lado do olhar etnográfico atento, detectamos a preocupação de alguém que pretende mais que descrever o outro. Desses pastores que têm sido foco da atenção do autor, com resultados publicados em vários textos, a narrativa tenta chegar mais perto, num movimento de aproximação, no entanto, diferente daquele que comumente é a base dos documentos produzidos pelas ciências sociais. A energia da linguagem poética que emerge em muitas passagens sugere outras dimensões para esse que não deixa de ser um relato de viagens.

O texto completo em "Vou lá visitar pastores" - literatura, antropologia e identidade(s)

Design de vários países africanos a desafiar estereótipos

Publicado30 Jul 2015

Etiquetas Desig África estereótipos

Image Credit: Edward Tadros, ercol

O livro Contemporary Design Africa, de Tapiwa Matsinde, mostra peças de design de vários países africanos, afirmando uma visão do continente através de formas de criatividade que supera as ideias estereotipadas de uma estética exclusivamente tribal, ancestral e homogénea.

Tapiwa Matsinde’s book, Contemporary Design Africa, challenges perceptions of African creativity by focusing on design and innovation on the continent. Tapiwa Matsinde is a British-Zimbabwean designer, creative business consultant, blogger and writer. Her book is attempting to push back against the “single story” of African art. The aim of the book is to challenge the standard imagery of “wooden statues, masks, animal prints, tribal markings, safari chic, ebony and ivory, and earth tones,”revealing a fluid, dynamic and unpredictable creative economy, in places as diverse as Nigeria, Zimbabwe, South Africa, Senegal, Burkina Faso and Mali. Inspired by Chimamanda Ngozi Adichie’s popular TED talk, Matsinde’s volume celebrates novel approaches to design throughout the continent.

Through photographs and text, Contemporary Design Africa considers a selection of intricate, colourful and sustainably produced decorative objects. Matsinde focuses especially on basketry, ceramics, metalwork, woodcarving, weaving and textiles, fashioned from materials such as beads, raffia, shells, embroidered textiles, leather, ivory, metals and bamboo, among others. Aside from extolling the objects, Matsinde emphasizes the originality and imagination of African artisans. To cite one example, she considers textiles by Henoc Maketo of Design Maketo, which draw inspiration from the multi-layered motifs and effervescent colour palettes of the Democratic Republic of Congo. Maketo specializes in screen-printing and uses old and new print techniques to produce his designs. In 2011 he won the prestigious New Design Britain, Fabrics Award at Interiors Birmingham.


Mais em ‘Contemporary Design Africa’ book highlights African innovation, challenging dominant perceptions of the continent


Kamel Daoud na Antena 2

Publicado29 Jul 2015

Etiquetas Kamel Daoud Mersault contra investigação

O argelino Kamel Daoud, convidado do Próximo Futuro em Junho, onde marcou presença no debate sobre os 4 Anos da Primavera Árabe, deu uma entrevista a Luís Caetano no programa "A Ronda da Noite", onde fala do seu livro, recentemente editado em Portugal  Meursault, contra-investigação (Teodolito, tradução de Inês Pedrosa), vencedor do Prémio Goncourt, narrativa a partir da obra de Albert Camus, O Estrangeiro. A justiça, deus, o absurdo, a condição de estrangeiro como parte do que define o humano, a(s) língua(s), a colonização e a descolonização, a Argélia actual, o radicalismo religioso: eis alguns dos temas desta conversa que pode escutar a partir do minuto 9:46, aqui



A descolonização da educação no Uganda

Publicado28 Jul 2015

Etiquetas descolonização educação uganda

Pensadores e políticos do pós-colonialismo apostaram, em vários países africanos, na "descolonização da educação". Bwesigye bwa Mwesigire, advogado, escritor e académico ugandês, escreve sobre esta questão, invocando intelectuais como Edward Said ou Ngugi wa Thiong’o, focando-se no caso do Uganda.

My mother started her elementary education in the early to mid 1960s, a few years after Uganda attained independence. She has been a headmistress of various rural primary schools for a number of years now, so I ask her about the content of the education she received in the 60s and what pupils today receive. She tells me that they had textbooks that taught them about basic life in England, Canada and India among other places where the British had spread their tentacles. Little was said about us, she says. The textbooks would not have a photo/illustration of an African child/person. They read of things they would not find in their reality. The homes they saw in the books were far from the ones they lived in. Intentionally and unintentionally the image of a proper home became that of the English home.

Jamaica Kincaid, writing of her own experience as a student in a colonial school in Antigua says inOn Seeing England for the First Time:

“When I saw England for the first time, I was a child at school sitting at a desk. The England I was looking at was laid out on a map gently, beautifully, delicately, a very special jewel; it lay on a bed of sky blue – the background of the map – its yellow form mysterious, because though it looked like anything so familiar as a leg of mutton because it was England – with shadings of pink and green unlike any shadings of pink and green I had seen before, squiggly veins of red running in every direction. England was a special jewel all right, and only special people got to wear it. The people who got to wear England were English people. They wore it well and they wore it everywhere in jungles, in deserts, on plains, on top of the highest mountains, on all the oceans, on all the seas, in places where they were not welcome, in places they should not have been. When my teacher had pinned this map on the blackboard, she said, ‘This is England’ and she said it with authority, seriousness and adoration, and we all sat up. Is was as if she had said, ‘This is Jerusalem, the place you will go to when you die but only if you have been good.’ We understood then – we were meant to understand then – that England was to be our source of myth and the source from which we got our sense of reality, our sense of what was meaningful, our sense of what was meaningless – and about our own lives and much about the very idea of us headed that last list. At the time I was a child sitting at my desk seeing England for the first time, I was already familiar with the greatness of it.”

The almost complete decolonisation of Uganda’s primary education

'Las Meninas' de Vélasquez analisado por Michael Jacobs no seu último livro

Publicado27 Jul 2015

Etiquetas Las Meninas Vélasquez Michael Jacobs

O último livro do Michael Jacobs, que não pôde terminar, por razões de doença, dedica-se à análise da famosa obra de Vélazquez, 'Las Meninas' que inspirara já as reflexões de Michael Foucault. O The Guardian publica um excerto do texto, onde Jacobs explica como tudo começou:

The envelope, postmarked Madrid, torn slightly on the lefthand corner, released, on opening, the pieces of a puzzle. “A jigsaw postcard,” explained a handwritten note inserted amidst the scrambled contents. “I found this in the gift shop of the Prado,” continued the mysterious sender. “I couldn’t decide at first whether you would want the picture as a fridge magnet, a notebook cover, a mouse pad, or a laminated coaster.” The rest of the message, I gathered, would only be revealed once I had put the card together.

I was able to do so almost without thinking. I knew the painting so well that I felt now almost extraneous to its reassembly. As if I was just a spectator watching a group of actors silently taking up their positions at the start of a play: the painter behind his easel; the child princess centre stage, the maids of honour alongside her; the shadowy couple behind; the dwarf and midget in front; the mastiff beside them; the lone courtier in the distance, posed on a flight of steps.

I turned the card over carefully, as if handling evidence from a crime scene. I glanced automatically over the identifying inscription reading “Diego Velázquez, Las Meninas, 1656, Museo del Prado”, before turning to a signature as cramped and barely decipherable as the sender’s handwriting. I pored over it for ages, until suddenly I realised whose it was. The person I remembered simply as Royce, whom I had not thought of in more than 30 years.

We had studied Spanish together during our privileged days at a school attached to London’s Westminster Abbey. I had been with him briefly in Madrid as a 17-year-old, and had even gone with him once to the Prado. He did not share then my great enthusiasm for the visual arts, and had once mildly mocked me for socialising at school with an intellectually pretentious and elitist group whom he liked to characterise as the “swarthies”. Royce and I had little in common, other than an interest in Spain and the Spanish language, which he professed to have cultivated largely in the belief that the Hispanic world would one day be the driving force behind the global economy. He envisaged a career as a businessman. He went on to achieve this ambition, as I discovered from regular Christmas cards he persisted in sending me for several years after we had last seen each other.

O texto completo, no The Guardian

'Adieu Carmen' e a sociedade colonial marroquina

Publicado24 Jul 2015

Etiquetas cinema Colonialismo

Adios Carmen, de Mohamed Amin Benamraou, aborda a sociedade colonial marroquina, sob domínio espanhol, e a relação dessa herança com o presente. Olivier Barlet faz a critica do filme no site Africultures:

Dédié à sa grand-mère, sa mère et… à Carmen, Adios Carmen puise dans les souvenirs d'enfance de Mohamed Amin Benamraoui. Il adopte le point de vue du jeune Amar, 10 ans, trop jeune pour comprendre ce qui l'entoure mais déjà assez marqué pour trouver sa voie face à la violence à l'œuvre, aussi bien dans la société coloniale que dans sa propre famille. De fait, le film décrit un milieu dur où chacun est un loup pour l'autre, mais où les enjeux restent les relations affectives. Car dans le contexte de l'annonce en 1974 par l'Espagne d'un référendum d'autodétermination au Sahara occidental, de la Marche verte du 6 novembre 1975 pour s'y opposer en prenant possession du territoire et de la mort de Franco le 20 novembre, ce petit monde de Nador tremble encore de l'ambigüité de son rapport d'amour-haine envers l'ancien colon (les provinces du nord étaient sous protectorat espagnol jusqu'en 1956). Belle et attirante étrangère, Carmen (incarnée en retenue par l'actrice chilienne Paulina Gálvez), réfugiée antifranquiste, attise les désirs et cristallise la relation à l'Europe. Les contingences sociales et politiques restreignent singulièrement les possibles, mais Amar sera son messager dans son amour impossible avec un jeune Marocain. Caissière au cinéma de la ville, elle laisse entrer Amar qui se passionne pour les films de Bollywood, y revivant les émotions de ses difficultés familiales, en attente de sa mère qui a dû partir se remarier en Europe et sous la coupe d'un oncle alcoolique et violent. Cet ogre désire Carmen, devenue par son amitié simple une figure maternelle de remplacement pour Amar. - See more at: 

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Lévi Strauss e as viagens ao Mato Grosso

Publicado22 Jul 2015

Etiquetas Levi Strauss antropologia Mato Grosso

A propósito da publicação na Argentina de um livro que junta vários artigos de Lévi Strauss publicados na última década do século XX em Itália, Todos somos caníbales (Libros del Zorzal) , a Revista N/Clarín publica um ensaio de Nicolas Viotti, doutorado em Antropologia e investigador da Conicet, sobre o autor de Tristes Trópicos.

Existe una imagen más o menos estereotipada sobre el estructuralismo antropológico como sinónimo de una vocación por buscar abstracciones lógicas alejadas de lo cotidiano y la historia. Si algo de eso es parte del proyecto antropológico de Lévi-Strauss, deberíamos subrayar que ese retrato corre el riesgo de ser una mala caricatura. El esfuerzo de una mirada alternativa a los determinismos occidentales y la crítica al etnocentrismo de la idea liberal de “hombre” son las dos caras de un mismo proyecto centrado en una vocación comparada que busca una mirada mas extensiva y compleja de lo humano. Un mérito de ese proyecto fue poner en discusión el valor epistemológico de la diferencia, de la forma de pensar de los otros como recurso para pensarse.

Pero ese giro hacia la diferencia no era una preocupación por el detalle, como a veces suele presumirse equivocadamente cuando se habla del “giro antropológico”. La génesis del pensamiento de Lévi-Strauss supone un gesto radical que toma distancia del método etnográfico y el “vivir entre los nativos” iniciado por Malinowski. Comienza mucho antes, en el siglo XVI, con el gesto relativista y polemista de Montaigne sobre el canibalismo en las costas sudamericanas: “todo hombre considera bárbaro lo que no corresponde a su cultura”. El canibalismo era parte de lo humano, pero de una humanidad diferente que en el fondo no era ni más ni menos violenta que la europea. La inclusión de la diferencia como parte del problema de la humanidad y las instituciones sociales tal y como el pensamiento occidental las conoce no es simplemente resultado de un interés clasificatorio sino de un ejercicio de reconocimiento de las relaciones entre modos de pensamiento diferentes. En Montaigne y América, uno de los más sugerentes ensayos de este libro recientemente publicado en castellano, vuelve sobre el tema de los orígenes amerindios de la democracia. El principio democrático europeo de la ilustración, que se encarnaría en Locke y en Rousseau, no puede entenderse sin la toma de conciencia de Montaigne de un otro “salvaje” que es fuente y principio tanto de la “barbarie”, que cierra el pensamiento europeo sobre sí mismo, como de la “igualdad”, que lo abre a la idea de un otro que tiene algo de lo que se puede aprender.

Lévi Strauss en la ruta de los caníbales del Sur

Nine Artists, na Stevenson Gallery, na Cidade do Cabo

Publicado22 Jul 2015

Etiquetas stevenson Nine Artists


Marvin Luvualu Antonio, Cape Town Redux, 2015, Acrylic on canvas, 280 x 227cm
© the artist. Courtesy STEVENSON, Cape Town. Photo: Mario Todeschin


Marvin Luvualu Antonio e Matthew Alexander King são dois artistas que integraram a exposição Nine Artists, que terminou a 18 de Julho, na Stevenson Gallery, na Cidade do Cabo e cuja permissa foi assim resumida no comunicado da galeria: “Each artist has, in some way or another, a relationship to the African continent. As a gallery, this reflects our program, but our intention for this exhibition was to avoid the imposition of an homogenizing theme, and the prescriptive reading thereof. Doubtless the exhibition will be read as a whole, but that is up to the viewer. It is, like many exhibitions, an experiment.”

O site Contemporay and entrevistou estes dois artistas sobre os trabalhos expostos no contexto da sua obra.

Marvin Luvualu Antonio

Stefanie Jason: Could you share how the concept of Trash Talks came about?

Marvin Luvualu Antonio: It was spurred by Philip K. Dick’s novel Do Androids Dream of Electric Sheep, specifically an invented term that kept being used: kipple. It refers to the detritus that covers the landscape and literally rains down on the human population in the form of dust. I liked how the characters had a neurotic relationship to kipple, which was this inescapable reminder of a past no one could either remember or had seen before. Their engagement with it raised questions about themselves and their world. So considering my affinity to found objects, I wanted to use the idea of kipple as a framework to engage with the landscape of Cape Town and its own archive of objects to produce a new site-specific body of work. I also thought the book made amazing analogies surrounding the idea of ‘the real’ in terms of humans’ relationships to replicas or what constituted real human connection. The androids made me think of sculpture or art in general in that sense.

Matthew Alexander King, You Asked A Joke Question, But I Gave A Serious Answer, 2015, Performance © the artist. Courtesy STEVENSON, Cape Town. Photo: Mario Todeschini

Matthew Alexander King

SJ: What brought about You Asked A Joke Question, But I Gave A Serious Answer [And So On], and its title? And why did you choose performative gestures for “Nine Artists”?

Matthew Alexander King: The very prosaic start of this answer is that I was asked specifically to do performance work for “Nine Artists.” The title in your question is actually truncated. The full title of my section of the show is, You Asked A Joke Question, But I Gave A Serious Answer, or Very Uncertain Gestures, or ‘Did I Win?’ ‘No. But At Least You Got Four Feet From The Dock’. I have a fondness for very long titles, for their unwieldiness and so on. It’s also a fairly straightforward way of providing thematic cues. Or, at least I hope it’s straightforward. The ‘performative gestures’ come then from that kind of space. I’ve been preoccupied of late with thinking about performance art and where some of its ‘limits’ might be, and what it means to work up against them. The invitation to be on this show seemed to provide me with the time to try and do something useful somewhere along those limits.

A entrevista completa, aqui

A cultura griot no livro Medicin, de António Poppe

Publicado21 Jul 2015

Etiquetas poesia tradição griot

Capa de Joana Fervença

A partir do livro de poesia Medicin, de António Poppe, pela editora Douda Correira, cuja capa é inspirada num estudo árabe de anatomia, Alexandra Lucas Coelho escreve sobre a tradição dos griots, presente no livro, que invoca também um dito do militar brasileiro Cândido Rondon, bisneto de indígenas. 

1. Ouvir um livro antes de o ler, aconteceu antes de eu deixar Lisboa, no começo de Junho. É um livro feito para isso mesmo, ser dito, talvez cantado, como os griots fazem. A primeira vez que vi a palavra “griot” pensei numa criatura lendária, daquelas que os homens esculpiam nos templos ou à entrada das cidades, mas os griots existem em carne e osso até hoje. O pré-poema deste livro é uma definição de griot e diz assim:

Djeli, Griot: artesão da palavra. Guardião oral, oriundo Mandinga. Conciliante contador de histórias. Músico tocador de Kora que abrange tudo. Cadência que sara a voz criada. A fala do encontro.

2. Navegando pela rede, uma das explicações para a origem da palavra “griot” é a palavra portuguesa “criado”. A minha amiga Daniela Moreau confirma, e ela é o ponto de coincidência entre o livro que ouvi em Lisboa e este lugar onde agora o li, no interior de Minas Gerais. Não me tinha ocorrido ao trazê-lo, mas a Daniela passou os últimos anos mergulhada no mundo que os griots cantam e contam, guardando genealogias, herbários, antologias, a história da África ocidental. Então, quando abri o livro, ela abriu no ecrã do computador griots de há cem anos no Mali e no Senegal: por vezes em pé, por vezes sentados no chão, por vezes acompanhando um senhor, porque na tradição os griots eram os louvadores de um senhor, figuras da corte, embora sempre tenham existido griots itinerantes. Griots, resume Daniela, são louvadores, e também estarão no ensaio que ela se prepara para publicar no Brasil, resultado de anos de pesquisa sobre milhares de fotografias do francês François-Edmond Fortier (1862-1928), todo um caleidoscópio novo para o Mali e o Senegal durante a colonização francesa. Neste fim-de-mundo mineiro, que adoptei como oficina, Fortier é uma espécie de espírito da casa. Senta-se à mesa connosco e com os espíritos que vou trazendo, por exemplo, os que estão emmedicin. (assim mesmo, sem capitular e com ponto final), de António Poppe, o livro que ouvi antes de deixar Lisboa.

O artigo completo em O que vi seja amor

Imagem e memória: retrospectiva de Videobrasil em Buenos Aires

Publicado17 Jul 2015

Etiquetas videobrasil videoarte



Imagem: Liu Wei. “Unforgettable Memory”, 2009. Video, 10’17’’.

Memorias imborrables é uma exposição, em três lugares da cidade de Buenos Aires, que mostra obras do arquivo de VideoBrasil, o festival de vídeoarte mais antigo da América Latina, com mais de 30 anos. Agora na capital argentina, uma selecção de 14 obras que sublinham a perspectiva crítica, histórica e a relação com as lutas políticas e sociais. 

“Con la selección intenté ser fiel a la línea de Videobrasil, y a la cuestión política y social que el festival siempre muestra”, comenta Pérez Rubio. “Hay presentes una serie de artistas provenientes de puntos geopolíticos claves. A través de ellos me pregunté cómo intentan recrear la memoria y cómo reflejan los conflictos que ocurren alrededor.” El corralito de 2001 en nuestro país, el apartheid sudafricano, la guerra civil en el Líbano, el avance de las compañías petroleras sobre la Amazonia, el racismo, la discriminación por género, la esclavitud, la colonización, son temas que se presentan en estos trabajos –algunos, piezas históricas del lenguaje audiovisual– y que, en diferente medida, continúan vigentes. El video más antiguo es de principios de los años 80: O sangue da terra , de Aurélio Michiles es un alucinante documental que el artista realizó con el pueblo Sateré Mawé en medio del Amazonas, en contra de la compañía petrolera francesa Elf Aquitaine, ¡sin siquiera tener una cámara propia! Analógica, por supuesto, la película fue hecha en U-matic, el primer formato de videocasete que estuvo a la venta. El video más reciente es de 2013 –el excelente O samba do crioulo doido , de Luiz de Abreu–. Si se tiene en cuenta que entre uno y otro video hay tres décadas, es inmediata la reflexión sobre cómo algunos problemas políticos y sociales siguen sin solución aún tiempo después de haberse puesto en evidencia. También es notable en Memorias imborrables la cuestión del desarrollo técnico; los diferentes soportes con que cada uno de los videos fue realizado son indicadores, también, de diferentes períodos históricos. A pesar de que todas las obras están digitalizadas, existe un desafío que va más allá de esta muestra, y que se refiere a temas de conservación y restauración patrimonial técnica y digital: ¿cómo hacer para preservar las características de cada soporte de video? “Esto es fundamental para realizar una lectura histórica de las obras –comenta Farkas– ya que algunas están identificadas por los tipos de aparatos técnicos del momento en que fueron realizadas. Se trata de lo que podríamos llamar una arqueología de los medios”.

Na Revista Clarín, Si hay imagen no hay olvido

A despedida de Paul Theroux de África

Publicado16 Jul 2015

Etiquetas Paul Theroux África Último Comboio para a Zona Verde

Paul Theroux, escritor de viagens e romancista, autor de a Arte da Viagem (Quetzal, 2012), O Grande Bazar Ferroviário (Quetzal, 2011), Regresso à Patagónia, entre tantos títulos, viveu no Malawi nos anos 60 e regressou diversas vezes ao continente africano, tema de muitas das suas obras.  Último Comboio para a Zona Verde (Quetzal, 2014) narra a sua viagem da Cidade do Cabo até Angola, experiência de tal forma marcante que assinala a sua despedida de África. O El Pais escreveu sobre este livro:

El último tren a la zona verde relata el viaje del autor por tierra por el sur de la costa oeste africana entre Ciudad del Cabo y Angola, un país que ha padecido una de las guerras más largas, salvajes y olvidadas del siglo XX. La desértica Namibia ocupa un lugar central en su viaje y, sobre todo, su encuentro con los bosquimanos, una tribu de cazadores recolectores que tienen un lazo directo con nuestros antepasados más remotos, ya que son el pueblo más antiguo de la tierra. Este libro es mucho más que un viaje. En cierta medida, Theroux lo utiliza para despedirse de África, ya que está escrito desde la sensación de que tal vez no le queden energías para realizar otro recorrido similar. Y, en ese sentido, trata de reflejar en él toda una vida de sabiduría viajera, de cruces de fronteras, de encuentros inesperados con el otro, de paisajes y ciudades que muestran la inagotable diversidad del mundo. El libro está lleno de historia, de referencias literarias —recuerda una maravillosa frase del gran libro de Rebecca West sobre los Balcanes, Cordero negro, halcón gris: “A veces es muy difícil saber la diferencia entre la historia y el olor de una mofeta”—. Pero, ante todo, ofrece una mirada sobre lo que significa viajar, escrita por un autor que ha recorrido prácticamente todo el mundo. Explica, por ejemplo, que no se puede conocer una ciudad desde su centro, que siempre hay que acudir a su periferia.

Artigo completo em Una despedida de África

Hélia Correia e a língua portuguesa

Publicado15 Jul 2015

Etiquetas Hélia Correia Prémio Camões Língua Portuguesa

Imagem: Gonçalo Rosa da Silva

A escritora portuguesa Hélia Correia foi recentemente distinguida com o Prémio Camões, sucedendo ao brasileiro Alberto Costa e Silva. Autora de romances, contos, peças de teatro e poesia, conta com uma obra extensa, entre a qual se destaca O Separar das Águas (1981), A Casa Eterna (2000), Adoecer (2010) e Vinte Degraus e Outros Contos (2014), publicados em Portugal pela Relógio d'Água.  O prémio foi entregue dia 7 de Julho, ocasião em que a autora falou da importância da literatura e da diversidade da língua portuguesa. 

Na ditadura da economia, a palavra é esmagada pelo número. A matemática, que começou nobre, aviltou-se, tornando-se lacaia. Se a literatura salva? Não, não salva. Mas se ela se extinguir, extingue-se tudo.

O nosso mundo de sobreviventes está seguro por laços muitos finos. Eu vejo os fios que unem os textos nas diversas versões do português, leves fios resistentes e aplicados a construirem uma teia que não rasgue. Quando o angolano Ondjaki dedica um poema ao brasileiro Manoel de Barros, quando Mia Couto reconhece a influência que teve Guimarães Rosa na sua escrita transfiguradora e transfigurada pelas africanas narrativas do seu povo; quando a portuguesa Maria Gabriela Llansol  considera Lispector «uma irmã inteiramente dispersa no nevoeiro», vemos a língua portuguesa a ocupar - não como o invasor ocupa a terra, mas como o sangue ocupa o coração - um espaço livre, um sítio para viver, uma comunidade de diferenças elástica, simbiótica e altiva. Esta é a ditosa língua, minha amada.

O texto completo, em Ditosa lingua

Visões sobre a negritude na fotografia

Publicado14 Jul 2015

Etiquetas Negritude fotografia arquivo Sebastião Salgado

Imagem: Fotógrafo desconhecido, Retrato de estúdio do Rei Khama III. África do Sul, início do séc. XX

A exposição Distance and Desire: Encounters with the African Archive esteve patente no C/O Berlin, em colaboração com o African Photography from The Walther Collection. Elsa Guily, crítica de arte radicada em Berlim, analisa esta exposição, confrontando-a com outra, Genesis, de Sebastião Salgado, do ponto de vista da representação dos estereótipos e da perpetuação, ou não, da perspectiva ocidental dominante sobre a negritude.

 Its eloquent title, Distance and Desire: Encounter with the African Archive, announces its preconceived purpose upfront: asking questions as to the role of archives and the impact of the photographic image in the writing of history. The project was organized into three sections, beginning with photographs from the Walther Collection and juxtaposing images from historical archives of photos taken in southern and eastern Africa around the turn of the twentieth century with works by contemporary artists from African perspectives whose approaches seek to reinterpret the ethnographic and colonial archive. From the outset, the visitor is clued in:  it is impossible to view these photographs without realizing the violent relations inherent in European colonialism in Africa, and equally impossible to detach them from the historical contexts in which they were produced. The displacement of these archives invites us to examine our own gaze with a certain critical distance in order to reflect upon the processes of identifying and constructing difference, especially racial and gendered difference. The project re-envisions the archive as the bearer of collective memory, restoring the agency and individuality of the subjects portrayed and thereby creating alternative narratives of history.

In parallel to Distance and Desire, the Genesis project by photographer Sebastião Salgado intones an ecological message to humanity. These purportedly “socially conscious” photographs, which amount to a romantic invitation on an “eco-tourist” journey, perpetuate the representation of ethnicized bodies beside immaculate landscapes in black and white. The portraits’ subjects are made anonymous, their identities reduced to objectifying and vulgarizing captions that describe their practices and customs. Considering that both cultural visions are embedded in the same globalized, post-migratory space, it seemed to me that despite the Distance and Desire project’s noble intentions to deconstruct the white supremacist gaze, an ambivalent complicity might lodge in visitors’ minds. Thus I was compelled to interrogate both exhibition spaces jointly in light of the problems of images’ circulation and the act of “making visible.” How is the viewer positioned in relation to the discursive powers of representation? What relationships are formed between the photographer as an auteur, the individual photographed, and the viewer? At what point does the act of observation begin to dictate the subject’s development?

O texto completo em Gazing at a Distance

A obra de Clarice Lispector pelo seu biógrafo

Publicado13 Jul 2015

Etiquetas clarice lispector Benjamin Moser

Benjamin Moser, biógrafo de Clarice Lispector, autor de Clarice. Uma Vida (2010, Civilização Editora), publica na New Yorker um texto sobre a escritora. 

In the eighty-five stories that she wrote, Clarice Lispector conjures, first of all, the writer herself. From her earliest story, published when she was nineteen, to the last, found in scratchy fragments after her death, we follow a lifetime of artistic experimentation through a vast range of styles and experiences. This literature is not for everyone: even certain highly literate Brazilians have been baffled by the cult-like fervor she inspires. But for those who instinctively understand her, the love for the person of Clarice Lispector is immediate and inexplicable. Hers is an art that makes us want to know the woman; she is a woman who makes us want to know her art. Through her stories we can trace her artistic life, from adolescent promise through assured maturity to the implosion as she nears—and summons—death.

But something more surprising appears when these stories are at last seen in their entirety, an accomplishment whose significance the author herself cannot have been aware of, for it could only appear retrospectively. This accomplishment lies in the second woman she conjures. Clarice Lispector was a great artist; she was also a middle-class wife and mother. If the portrait of the extraordinary artist is fascinating, so is the portrait of the ordinary housewife, whose life is the subject of her stories. As the artist matures, the housewife, too, grows older. When Lispector is a defiant adolescent filled with a sense of her own potential—artistic, intellectual, sexual—so are the girls in her stories. When, in her own life, marriage and motherhood take the place of precocious childhood, her characters grow up, too. When her marriage fails, when her children leave, these departures appear in her stories. When the author, once so gloriously beautiful, sees her body blemished by wrinkles and fat, her characters see the same decline in theirs; and when she confronts the final unravelling of age and sickness and death, they appear in her fiction as well.

O texto completo em The True Glamour of Clarice Lispector

Carta aberta pela liberdade de expressão, de Abdelhak Serhane

Publicado11 Jul 2015

Etiquetas Liberdade de expressão marrocos Abdelhak Serhane

Abdelhak Serhane, escritor, ensaísta e poeta marroquino que esteve presente na Festa da Literatura e do Pensamento das Zonas de Contacto, no Próximo Futuro, em Junho de 2015, no debate em torno dos quatro anos da Primavera Árabe, escreveu uma carta sobre a questão da diminuição da liberdade de expressão no seu país, que tem tido forte eco nas redes sociais, apontando ao Estado o principal foco de repressão a par de um investimento contraditório em equipamentos culturais, conforme noticia H24 com o Le Figaro.

A carta, na íntegra, publicada no blogue de Mediapart

« Tout ce qui dégrade la culture raccourcit les chemins qui mènent à la servitude. » A. Camus

 

Au Maroc, depuis une décennie au moins, nous assistons à des offensives répétées de la part du système contre les libertés en général et la liberté d’expression en particulier. La presse dite indépendante fait désormais partie du souvenir et rien ne justifie la violence physique disproportionnée ou le harcèlement psychologique dont use l’Etat contre la liberté des citoyens.

L’Etat qui emprisonne le journaliste, condamne le chanteur, appréhende le caricaturiste, interdit un livre ou un film, pousse ses intellectuels à l'exil ou au silence… L’Etat qui veut cacher la vérité comme il cache ses femmes et musèle ses hommes, qui s'entoure de lamentables interlocuteurs, crie au scandale devant les fesses d’une star invitée par lui, tremble devant une robe ou un bikini, mobilise ses cohortes de journaleux spécialistes de l'injure quand le mensonge est dévoilé... n'est pas un Etat solide, sûr de sa légitimité. L'Etat qui refuse de voir ce qui se passe dans la rue, ne veut pas entendre ce qui se dit sur lui, qui ne dialogue pas, qui a atteint un niveau singulier dans l'art de l'interdit et de la répression, est un Etat qui a peur. Peur de ses propres enfants et de ses défaillances. Un mot le perturbe. Un dessin le trouble. Un livre le déstabilise. Une caricature l’ébranle. Une information le dérange. Une anecdote l’agite...Et un spectacle lui ôte le sommeil. Cet Etat-là n'est pas un Etat-citoyen. Un Etat qui s'impose par la violence du gourdin n'est pas un Etat de droit. Un Etat qui n'honore pas ses femmes et ses jeunes, qui ne les respecte pas, n’est pas un Etat démocratique et ne peut être ni respecté ni écouté ni honoré à son tour. Et cet Etat qui permet aujourd’hui à n’importe qui de s’ériger en censeur, donneur de leçons, juge ou gardien de la morale, cherche à faire de nous des morts-vivants.

Texto integral em Ils veulent qu'on vive comme des morts

Atenas: cultura e arte em tempos de incerteza

No passado mês de Junho, dias 18 e 19, aconteceu na Fundação Calouste Gulbenkian o Encontro de Lisboa: Reunião de Organizações Independentes para a Mobilidade Artística e Cultural no Mediterrâneo e na América Central, uma iniciativa do Roberto Cimetta Fund em parceria com o Próximo Futuro, inserido no Observatório de África, América Latina e Caraíbas.

O encontro, restrito ao grupo de trabalho, cujo programa pode ser consultado aqui, abordou o conceito de mobilidade, as necessidades dos artistas destas regiões, os benefícios da mobilidade cultural para o diálogo da sociedade civil, os financiamentos existentes e necessários, entre outros temas.

Herman Bashiron Mendolicchio, um dos participantes no encontro,doutorado em História de Arte, Teoria e Criticismo pela Universidade de Barcelona e é investigador visitante no United Nations University Institute on Globalization, Culture and Mobility (UNU-GCM), publicou recentemente o artigo "Athens: arts and culture in times of uncertainty":

In a recent trip to the Greek capital, the city of Athens, I tried to understand the production, development and circulation of art and culture in “difficult times”. For that I met and talked to artists and professionals from cultural institutions, and I dipped in the atmosphere of the city today. If we exclude those central streets crossed by tourists, the Acropolis area and some spring nights in Gazi or Exarcheia, the general atmosphere of the city is definitely quite tense.

The economic crisis, which has evident effects on the daily life of the population, has certainly affected the art and cultural sector. At the same time, the points of view and perceptions regarding the vitality, the opportunities and the strength of the sector are quite discordant.

On one side, the cultural and artistic field have been ravaged by the savage cuts brought by a widespread depression. On the other side, the cultural and social life in the city of Athens seems to remain bright and effervescent. What are the reasons behind this apparent contradiction? From a certain point of view, the public funding in Greece has always been quite small and the sector is used to struggle to find the necessary funds to survive. According to some Athenians, the economic crisis has awakened, paradoxically, a sense of vitality, a rediscovered sense of relations, giving new and higher relevance to the social aspects of life. Other Athenians, nonetheless, perceive a deep depression in the sector, pointing at the example of many artists and cultural professionals who have migrated to other countries.

Artigo completo aqui

Diego Rivera e Frida Kahlo em Detroit

Publicado9 Jul 2015

Etiquetas Frida Khalo diego rivera Detroit

Imagem: Frida Kahlo, “Self-Portrait on the Borderline between Mexico and the United States” (1932), oil on metal (private collection)

A exposição Diego Rivera and Frida Kahlo in Detroit, no Detroit Institute of Arts, mostra, até domingo, obras dos dois artistas mexicanos relacionados com a sua passagem pela cidade, nos anos 30, num tempo muito anterior à bancarrota da cidade, que mudou completamente a paisagem e a vida dos seus habitantes. O site Hyperallergic escreve sobre esta exposição:

Detroit has become a cautionary tale for what can happen when people cling to old methods in times that require innovation and radical change. The most interesting and important part of this exhibition is not how the artists loved each other or what they made in Detroit, or even why or how they made it, but the way it underlines the struggles and ties between art, labor, and matrimony that persist 80 years after the couple left town. The air of conventionality and traditionalism in the way this couple’s works and lives are displayed doesn’t feel like a celebration of the DIA or Detroit’s artistic future, but like a representation of the city’s continued longing for the perceived comforts of the past. The art is constantly in conflict with the institutions it ostensibly sought to romanticize: Rivera and Kahlo’s marriage; the automotive industry; and, more subtly, the museum itself.

O artigo completo em Frida Kahlo and Diego Rivera Offer Dueling Accounts of Detroit’s Industrial Glory

Alejandro Zambra escreve sátira sobre acesso à faculdade no Chile

Publicado8 Jul 2015

Etiquetas Alejandro Zambra


Ilustração: Matt Dorfman Alejandro Zambra, autor chileno que esteve no Próximo Futuro em 2014, publica texto inédito na revista The New Yorker, uma sátira aos exames de entrada para a faculdade no Chile. 

After so many study guides, so many practice tests and proficiency and achievement tests, it would have been impossible for us not to learn something, but we forgot everything almost right away and, I’m afraid, for good. The thing that we did learn, and to perfection—the thing that we would remember for the rest of our lives—was how to copy on tests. Here I could easily ad-lib an homage to the cheat sheet, all the test material reproduced in tiny but legible script on a minuscule bus ticket. But that admirable workmanship would have been worth very little if we hadn’t also had the all-important skill and audacity when the crucial moment came: the instant the teacher lowered his guard and the ten or twenty golden seconds began.

At our school in particular, which in theory was the strictest in Chile, it turned out that copying was fairly easy, since many of the tests were multiple choice. We still had years to go before taking the Academic Aptitude Test and applying to university, but our teachers wanted to familiarize us right away with multiple-choice exercises, and although they designed up to four different versions of every test, we always found a way to pass information along. We didn’t have to write anything or form opinions or develop any ideas of our own; all we had to do was play the game and guess the trick. Of course we studied, sometimes a lot, but it was never enough. I guess the idea was to lower our morale. Even if we did nothing but study, we knew that there would always be two or three impossible questions. We didn’t complain. We got the message: cheating was just part of the deal.

O artigo completo aqui

Filosofia africana

Publicado7 Jul 2015

Etiquetas Filosofia africana

Imagem: Chérif Thiam: “Gouye Birame Coumba”, Senegal, 1973

A partir de livros como El pensamiento tradicional africano, de Ferrán Iniesta ou Síntesis sistemática de la Filosofía Africana, de Nkogo Ondó, Sonia Fernández Quincoces, colaboradora do blogue Literafrica identifica vários nomes do pensamento filosófico africano, como Cheik Anta Diop, Wole Soyinka, Chinua Achebe, Ngugi wa Thiong´o, Okot p’Bitek o Taban Lo Li, entre outros:

El historiador y antropólogo senegalés Cheikh Anta Diop publicó en 1955 su tesis doctoral en el libroNations nègres et culture  sobre la idea de que el antiguo Egipto había sido una cultura negra. Peroafirmó además que Egipto había sido la cuna de la civilización occidental. Diop aseguró que la filosofía nació en Egipto, fruto de los viajes a esta tierra que llevaron a cabo pensadores como Tales de Mileto, Aristóteles, Pitágoras o Platón, que se formaron en Heliópolis, Hermópolis, Menfis o Tebas, los centros del saber egipcios (e, incluso, hay base para hablar de un origen de la filosofía en Etiopía).

Lo anterior es una muestra más de lo poco que conocemos sobre nuestra propia cultura y pensamiento. Y lo mucho que nos han (re)conducido hacia ese lugar único al que (re)conocemos como la única civilización: occidente. Para después verter buenas capas de negación en torno al constatado hecho de que los africanos han elaborado (antes y después) sistemas de pensamientos complejos y dignos de ser escuchados, tenidos en cuenta y estudiados. La creencia colonialista que mantenía que el negro no podía crear filosofía alguna debido a su mente pre-lógica fue la antesala de la negación de su existencia. El anterior solo es uno de los muchos clichés que pesan sobre ella, al igual que el creer que no existe actividad filosófica fuera del tipo o método occidental de filosofar tan sustentado en el razonamiento lógico.

Artigo completo em El pensamiento africano existe, aunque lo ignoremos o lo desconozcamos

O Totem do Próximo Futuro em 2014 no Archdaily

Publicado6 Jul 2015

Etiquetas Totem Tupã Projecto Subvert arquitectura

© Subvert / APP Photography

O Totem Tupã, o espaço onde se realizaram em 2014, os debates da Festa da Literatura e do Pensamento da América Latina, foi destacado no site de arquitectura Archdaily. O projecto, da Subvert Studio, foi concebido por Tiago Rebelo de Andrade, Diogo Ramalho, Manuel Tojal, Kaleigh Nunes, Adrien Zlatic. 

© Subvert / APP Photography

Totem é "(...) um objeto ou animal no qual uma determinada sociedade acredita ter um significado espiritual e que é adotado por essa mesma sociedade como um símbolo."

O Totem reflete os quatro elementos naturais: a terra – de onde ele surge; o ar – o elemento que o sustenta; o fogo – através da reflexão da luz e do sol; e a água – insinuado pela respetiva textura e forma. A estrutura do pavilhão é de aço e construído com placas de madeira cobertas de papel espelhado.

Outras imagens e informação aqui

O mercado da arte segundo os países de origem

Publicado3 Jul 2015

Etiquetas Mercado da arte Origem geográfica

De que forma a origem geográfica dos artistas condiciona o valor das obras no mercado mundial? Como é que esse aspecto influencia as economias? Quais são os países mais valorizados? É o tema do artigo do site Hyperalergic, que se refere a um site dedicado a comparar mercados em várias áreas.  

Still, aside from being pretty, the maps offer some insightful observations of the art market: as howmuch.net notes, buyers tend to assign the greatest value to Western — and largely European — works: according to its numbers, paintings by Munch, Warhol, Klimt, van Gogh, Monet, Ruben, and Modigliani claim the top ten positions. The most expensive painting from Asia is reportedly Zhang Daqian’s “Lotus and Mandarin Ducks,” which sold for $24,551,210 — or less than 14 percent of Picasso’s price tag. Chilean artist Robert Matta claims the highest value for a South American work for “La révolte des contraires,” which raked in $5,010,500; just $35,000 shy of Matta’s painting is the highest-selling one from Africa: South African artist Irma Stern’s “Arab Priest.” Matta and Stern’s paintings each amount to less than three percent the cost of the Picasso.

Discrepancies aside, the study concludes that the maps illustrate “the accumulation of wealth in rich nations,” showing the increasing value of artworks as investments rather than objects appreciated solely for aesthetic reasons.

O artigo completo aqui

«O genocídio do Ruanda: 'o direito de olhar'»

Publicado2 Jul 2015

Etiquetas Genocídio Ruanda; Summer School of Culture

Clara Caldeira, moderadora da sessão de Poesia das Zonas de Contacto, é investigadora do Centro de Estudo de Comunicação e Cultura da Universidade Católica e apresentou na Summer School of Culture/Lisbon Consortium, subordinado ao tema da Cidadania Cultural, um ensaio sobre a representação do genocídio do Ruanda na obra de Alfredo Jaar e Pieter Hugo. 

«O genocídio do Ruanda: 'o direito de olhar'»

Introdução

Num mundo globalizado pela comunicação, historicamente em plena era pós-colonial, no sentido estrito da temporalidade, após a independência dos países outrora colonizados, pretendemos neste trabalho analisar duas visões artísticas sobre o genocídio do Ruanda, ocorrido entre o início de Abril e meados de Julho de 1994 (cerca de 100 dias), que resultou em milhares de mortos, estimados entre 800 mil e um milhão. Queremos averiguar de que forma estas expressões artísticas constituem produção de conhecimento sobre o acontecimento, na complexa rede geopolítica do nosso tempo, contribuindo decisivamente para uma maior cidadania cultural.

Teremos em conta dois criadores, de geografias a sul do Equador, uma vez que nos interessa manter presente as novas identidades contemporâneas e a sua produção de discurso crítico através da criação, no contexto pós-colonial. São eles:

O artista multimédia Alfredo Jaar (Chile, 1956), com obra extensa sobre o etnocentrismo da perspectiva ocidental sobre o mundo, e o trabalho Untitled, de 1994, em que compara a cronologia do genocídio no Ruanda, descrita em texto, com as capas da Newsweek, no mesmo período de 17 semanas, colocando em evidência a invisibilidade da tragédia nesta relevante publicação norte-americana.

O fotógrafo Pieter Hugo (África do Sul, 1976), com dois trabalhos: Rwanda 2004: Vestiges of a Genocide, de 2004, em que, passada uma década, fotografa ossos, roupa, sepulturas; e Portraits of Reconciliation (2014), trabalho onde reúne pares de perpetrador/vítima, lado a lado, vinte anos depois.

Pretende-se, neste ensaio, responder às questões enunciadas:

Do ponto de vista do contexto pós-colonial:

Para o que chamam a atenção estas obras, enquanto discursos de criadores do sul? De que forma as obras constituem um discurso relevante na relação pós-colonial norte-sul, outrora, impérios e colónias? Como é que estes artistas reclamam “the right to look”?

Do ponto de vista da cidadania cultural:

Que contributo dão estas obras para uma ideia de mundo global (pós-colonial, pós-imperial) não estritamente em termos comunicacionais ou económicos, mas de cidadania cultural? Em que medida o facto de estes criadores serem do sul, mas com um alcance mundial, contribui para novos equilíbrios em termos de visibilidade de acontecimentos que levantam questões a nível humanitário?

Breve contextualização do genocídio do Ruanda

O Ruanda é um país africano sem costa marítima que faz actualmente fronteira com o Uganda, o Burundi, a República Democrática do Congo e a Tânzania. Ao contrário dos territórios vizinhos, não teve o seu destino decidido na Conferência de Berlim (1884-1885) que estabeleceu a partilha de África entre as potências europeias, mas sim numa conferência realizada em Bruxelas em 1890, onde foi entregue, juntamente com o Burundi, ao Império Alemão, em troca do Uganda. Depois da I Guerra Mundial e na sequência das sanções impostas pela Sociedade das Nações, o Ruanda é entregue à Bélgica que, mesmo após a II Guerra Mundial, tendo o estatuto de protectorado das Nações Unidas, permanece sob administração belga.

Anteriormente um reino monoteísta, a religião cristã é ali, como noutros lugares, um dos elementos fundamentais do processo de colonização, num regime que privilegiou a minoria tutsi, permitindo-lhes educação e acesso a cargos públicos, o que provoca um ressentimento crescente na maioria hútu, embora as etnias partilhem religião, língua e costumes.

Em clima de lutas independentistas, em 1959 dá-se um motim de expressão hutu e é publicado um manifesto de defesa daquela etnia. Grupos tutsis aproximam-se de outros movimentos independentistas de matriz comunista, o que afasta o governo belga, que passa a dar mais apoio à maioria hutu no processo de independência, que se efectiva em 1962. Os hutus ganham o poder, a tensão cresce, ocorrem tumultos que causam um número indeterminado de mortos, que se estima em milhares, e dá-se uma significativa migração de tutsis para o Uganda, genericamente associados aos comunistas, por oposição ao governo hutu, ligado à Igreja Católica e à influência democrata-cristã europeia.

Em 1973, Juvénal Habyarimana, hutu, então Ministro da Defesa, destitui o seu primo Grégoire Kayibanda e aprova uma nova constituição que aboliu todas as actividades políticas de oposição, com nível elevado de hostilidade contra os tutsis e um acentuado pendor católico, sendo obrigatório ter o baptismo para obter escolaridade mínima. Nos anos 80, um grupo de guerrilha tutsi liderado por Paul Kagame forma, no Uganda, a Frente Patriótica Ruandesa (FPR) com o objectivo de derrubar o presidente e regressar ao poder. O clima de tensão é crescente no Ruanda, com os tutsis a serem acusados por membros do governo de todos os problemas nacionais, e com uma forte retórica anti-comunista. Nos anos 90, o Ruanda atravessa uma crise económica e a FPR entra no país, despoletando o conflito em várias zonas. Em 1993, os Acordos de Arusha, na Tanzânia estabelecem um acordo entre as partes. Neste período, tenso e instável, instala-se no país uma missão de paz das Nações Unidas, para acompanhar o desenrolar dos acontecimentos.

A 6 de Abril um avião que transportava o presidente é atingido por um míssil, causando a sua morte e a do seu homólogo do Burundi, não estando esclarecida até hoje a autoria do atentado. A guarda presidencial dá início de imediato a uma campanha de retaliação e começam as matanças nas ruas de Kigali, sobretudo protagonizadas pela milícia Interahawe, que chegou a ter 30 mil elementos. Armas de fogo e artesanais foram distribuídas avulso à população, uma rádio de propaganda começa a emitir ordens de extermínio dos tutsis, considerando-os “o diabo” a eliminar da face da Terra. A primeira-ministra, hutu moderada, e dez capacetes azuis belgas são assassinados nos primeiros dias do genocídio. Ao final de uma semana, contam-se já 25 mil mortos. Mais de um milhão de refugiados estabelecem-se na Tânzania. A Bélgica retira quase de imediato o seu contingente do terreno. A 21 de Abril, uma resolução das Nações Unidas reduz o efectivo de capacetes azuis de 2500 para cerca de 300 homens. Durante os cem dias em que decorre a tragédia, sucedem-se negociações na ONU, em que a Nigéria intervém a favor do reforço do contingente e os Estados Unidos alegam o rescaldo da Somália para defender a não intervenção, apoiados de uma forma geral pelos países europeus. Várias forças militares colocadas em países próximos responsabilizam-se exclusivamente pela evacuação de brancos do país, de embaixadas e serviços. A missão de paz, comandada por Roméo Delaire, recebe instruções para abandonar o território mas, com o apoio da secção ganesa, o comandante recusa e permanece até ao final do conflito.

Depois de avanços significativos no norte do país, em finais de Junho, a FPR toma a capital e as matanças prosseguem. Os números ascendem a mais de meio milhão de mortos e estima-se que um milhão de hutus tenham saído do país, para campos de refugiados na República Democrática do Congo. Nesta altura, França anuncia o envio de reforços para a força de paz e é criada uma “zona de segurança” no sudoeste. Vários impasses negociais e administrativos retardam a chegada de mais capacetes azuis. Apenas a 21 de Julho se determina o reforço do contingente. Constitui-se um governo multiétnico de transição presidido por Pasteur Bizimungu e Paul Kagame como vice, que depõe o primeiro, sob acusações de instigação de mais conflitos étnicos. Em Novembro de 1994, uma resolução do Conselho das Nações Unidas criou o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda que julgou e condenou alguns dos responsáveis hutus. Estima-se que entre 800 mil a um milhão de pessoas perderam a vida e os refugiados ultrapassam os 2 milhões, de ambas as etnias. A violação foi uma prática corrente durante o genocídio, estimando-se que 250 a 500 mil mulheres foram violadas, disparando o índice de infecção por HIV no país, de que resultaram também 75 mil órfãos e cerca de 5000 mil crianças nascidas dessas relações foram assassinadas.

Os acontecimentos do Ruanda e a desresponsabilização da comunidade internacional deram origem a vários trabalhos de investigação e a um pedido formal de desculpas do então Presidente Clinton. A jornalista inglesa Linda Melvern[1] publicou dois livros sobre os planos detalhados do poder hútu para exterminar os tutsis, o conhecimento e a cumplicidade ocidentais, referindo o envolvimento de alguns países em tráfico de armas comprados com fundos humanitários desviados. Recentemente, em 2014, a BBC emitiu um polémico documentário, “Rwanda’s Untold Story”[2], onde vários testemunhos dão conta de matanças de hutus por tutsis, da participação de Paul Kagame em actividades criminosas e em propaganda de guerra enganosa, propondo uma interpretação dos acontecimentos contrária àquela que coloca os hutus como os grandes responsáveis de um genocídio que ficará para a História como um recorde de mortos em relação ao curto tempo do conflito.

[1] A People Betrayed. The role of the west in Rwanda’s Genocide,  Zed Books, 2000;  Conspiracy to Murder: The Rwanda Genocide, Verso, 2004 

[2] Disponível aqui: https://vimeo.com/107867605

A representação ocidental de África

A representação contemporânea ocidental sobre África é, de uma forma geral, negativa, e construída em torno de estereótipos e lugares-comuns sobre o continente, retratando-o como um lugar caótico, corrupto, assolado por conflitos “tribais”, onde a guerra, a miséria e a fome são os elementos chave dessa caracterização, com forte implementação no imaginário colectivo.

Na obra que dedica à questão das imagens do sofrimento, Regarding the Pain of Others, Susan Sontag (2004) situa historicamente a representação fotográfica de África no mundo ocidental desta forma:

"The more remote or exotic the place, the more likely we are to have full frontal views of the dead and dying. Thus postcolonial Africa exists in the consciousness of the general public in the rich world – besides through its sexy music – mainly as a succession of unforgettable photographs of larged eyed-victims, starting with figures in the famine lands of Biafra in the late 1960’s to the survivors of the genocide of nearly a million Rwandan tutsis in 1994 and, a few years later, the children and adults whose limbs were hacked off during the program of mass terror conducted by the RUF, the rebel forces in Sierra Leone (More recently, the photographs are of whole families of indigent villagers dying of AIDS). These sights carry a double message. They show a suffering that is outrageous, unjust, and should be repaired. They confirm that this is the sort of thing which happens in that place. The ubiquity of those photographs, and those horrors, cannot help but nourish belief in the inevitability of tragedy in the benighted or backward – that is, poor – parts of the world"(Sontag, 2004: 63-64).

Outra questão levantada por Sontag, sobre o discurso noticioso ocidental, cada vez mais dominado por imagens, é a noção de ‘mundo’, anunciado nos teasers e nos slogans dos espaços informativos televisivos ou dos jornais e revistas, em corolários que se propõem ‘dar o mundo em 20 minutos’ ou ‘pôr o mundo nas suas mãos’, “a very small place, both geographically and thematically, and what is thought to worth knowing about i tis expected to be transmitted terselly and emphatically” (idem: 17). Um mundo onde, nos media ocidentais, predominam as preocupações do norte do globo ou as suas perspectivas sobre os problemas em outras locais da Terra, nomeadamente África, comummente caracterizada como anteriormente descrito.

Um quadro de exclusão e negatividade que configura “an absolute otherness” (Mbembe, 2001: 2), nas palavras de Achille Mbembe, filósofo e politicólogo camaronense que tem obra publicada sobre as questões da negritude, os processos de colonização e descolonização e a História africana, numa perspectiva epistemológica que considere os contributos, as vozes e a diversidade africanas.

Mmembe esclarece os elementos constituintes dessa alteridade, que torna os africanos “human beings we perceive as foreign to us” (ibidem), considerando-os fundamentais para a auto-definição do Ocidente, por contraponto. “In several aspects, Africa still constitutes one of the metaphors through which the West represents the origin of its norms, develops a self-image, and integrates this image into the set of signifiers asserting what is supposed to be its identity” (ibidem).

Um dos aspectos dessa caracterização é a aproximação dos africanos à imagem de bestialidade/animalidade, conceito desenvolvido pela retórica colonial, numa empresa que se investiu também, simbólica e materialmente, de uma “missão civilizadora”. A esta ideia está associada a de brutalidade, liberdade sexual e morte, algo que não é possível sujeitar a uma ordem racional ocidental ou equacionar segundo o conceito de intimidade, portanto, incompreensível e inacessível (Mmembe, 2001: 2,3). Um dos eixos primordiais de representação da irracionalidade e da inacessibilidade do “africano” são as culturas ditas tradicionais, dominadas pela facticidade e arbitrariedade:

"By facticity is meant that, in Hegel’s words, “the thing is”; and it is merely because it is… and this simple imediacity constitutes the truth. In such case, there is nothing to justify; since things and institutions have always been there, there is no need to seek any other ground for them than the fact their being there. By arbitrariness is meant that, in contrast to the reason in the West, myth and fable are seen as what, in such societies, denote order and time. Since myth and fable are seen as expressing the very power of the originaire, nothing in these societies requires, as noted above, justification, and there is little place for other argument; it is enough to invoke the time of origins. Caught in a relation of pure immediacy, to the world an to themselves, such societies are incaple of uttering the universal” (Mbembe, 2001: 4)

Outra questão identificada por Mbembe no olhar ocidental sobre África é a ausência de individualidade, considerada uma invenção ocidental. Este argumento aplica-se à própria configuração geopolítica do continente, frequentemente ignorada e subsumida na palavra “África”, que assume uma unificação e homogeneidade distantes da realidade. A crítica sobre essa visão está patente, por exemplo, no blogue “Africa no Es um Pais”, do jornal espanhol El Pais, ou no site independente que transmite a mesma mensagem de forma irónica, designando-se Africa is a country. Em Portugal, o programa Próximo Futuro, da Fundação Calouste Gulbenkian, dedicado à investigação e criação não só, mas bastante, centradas em África, desempenha um papel relevante na desconstrução dos lugares-comuns sobre o continente.

Os argumentos de Mbembe não podem, pois, ser absolutizados, no sentido em que é possível, como se vê pelos exemplos referidos, encontrar focos, já com grande expressão, de pensamento e posicionamento no Ocidente que se distanciam das linhas narrativas e conceptuais dominantes sobre África que, no entanto, ainda subsistem no imaginário comum, nas perspectivas artísticas e curatoriais e em grande parte dos media.

No que diz respeito à representação da guerra e do sofrimento humano, considerar as ideias enunciadas por Mbembe é pertinente, por frequentemente nos chegarem explicações assentes no tribalismo, no caos, na confusão de nacionalidades, culturas e identidades, e na ausência de narrativas históricas ou outras dos próprios intervenientes. Acresce dizer que raramente estas perspectivas, ainda dominantes, são investidas de um pensamento auto-crítico que integre, numa lógica cidadã mais global e transtemporal, o peso da própria herança e intervenção do Ocidente em África nos conflitos contemporâneos, tanto ao nível do lastro da colonização, por exemplo, pela manipulação, desenraizamento e deslocação de populações locais, como na actualidade, por acções político-militares, de paz ou bélicas.

Afirma Sontag:

"Generally, the grievously injured bodies shown in published photographs are from Asia or Africa. This journalistic custom inherits the centuries old practice of exhibiting exotic – that is – colonized human beings: Africans and denizens of remote Asian countries were displayed like zoo animals in ethnological exhibitions mounted in London, Paris and other European capitals from the sixteenth until the early twentieth century. (…) The exhibition in photographs of cruelties inflicted on those with darker complexions continues this offering, oblivious to the considerations that deter such displays of our own victims of violence; for the other, even when not an enemy, is regarded only as someone to be seen, not someone who (like us) also sees" (Sontag, 2004: 65).

“The right to look”

Nicholas Mirzoeff, no artigo seminal “The right to look”, coloca em contraponto o direito de olhar e a visualidade, conceitos uteis para a análise aqui em questão. Por visualidade entende o autor o regime de visualização da História, definido por lugares de autoridade e interdição: “This ability to assemble a visualization manifests the authority of the visualizer” (474), autoridade essa que se constrói através de processos de classificação, separação e estetitização. Exemplifica o autor com um caso de racismo:

Think of Rosa Parks refusing to the back of the bus. I tis the dissensus with visuality, meaning “a dispute over what is visible as an element of a situation, over which visible elements belong to what is common, over the capacity of subjects to designate this common and argue for it” (Rancière, 2004:6). It is the performative claim of a right to look where none technically exists that puts a countervisuality on play” (Mirzoeff, 2011: 478)

Mirzoeff identifica três complexos de visualidade, em termos históricos, enquanto formas de organização social e do poder e respectivas figuras de controlo: o complexo da plantação e o capataz (1660-1865); o complexo imperial e o missionário (1857-1947); o complexo militar-industrial e o counterinsurgent (de 1945 até ao presente). Trata-se de sistemas simbólicos que indicam o domínio hegemónico de um certo parâmetro de visualidade vigente em épocas históricas, cujo lastro está presente na actualidade, e que pode ser exemplificado por todos os códigos relativos ao olhar nas relações de poder através dos tempos: o escravo que não podia olhar o senhor, a mulher que não devia olhar o marido nos olhos, o empregado que não dirige o olhar ao chefe, o prisioneiro de um campo de guerra que não pode encarar os seus guardas, os regimes de vigilância proporcionados pelas tecnologias que nos observam mas não podem ser observados, ou o que é transmitido ao público pelos media, de forma unidireccional, criando desta forma processos de hierarquização, domínio e controlo dos regimes de comunicação e representação. Contrapõe-se a estes regimes “the right to look”, ligado ao direito de existir, de afirmar uma subjectividade dentro de uma ordem estabelecida:

The right to look claims autonomy, not individualism or voyeurism, but the claim to a political subjectivity and collectivity (…) It is the claim to a subjectivity that has the autonomy of arrange the relations of the visible and the sayable. The right to look confronts the police who says to us: “move on, there is nothing to see here” (idem: 473, 474)

 Poder-se-ia afirmar que a visualidade, assim formulada por Mirzoeff, encontra paralelo nos “procedimentos de exclusão” do discurso, enunciados por Foucault, na sua Aula Inaugural do Collège de France, em Dezembro de 1970. Procedimentos “que têm por função esconjurar os seus poderes e perigos, dominar o acontecimento aleatório, esquivar a sua temível materialidade”. Destes, destaca-se aqui o interdito e o binómio razão/loucura. O interdito designa os temas sobre os quais não se pode falar, ou os códigos e circunstâncias sociais para o fazer e os sujeitos autorizados a tal.

Notaria apenas que, nos nossos dias, as regiões onde a grelha é mais cerrada, onde as casas negras se multiplicam, é a sexualidade e a política: como se o discurso, longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se desarma e a política se pacifica, fosse um dos lugares onde elas exercem, de modo privilegiado, alguns dos mais temíveis poderes (Foucault, 1997: 10).

O binómio razão/loucura opera como outra forma de exclusão, em que o louco, historicamente, era a figura desautorizada, o que dizia não tinha valor simbólico, era desacreditado, embora às suas palavras fossem simultaneamente atribuídos poderes místicos de revelação, uma revelação indesejada e perigosa: “De qualquer modo, excluída ou secretamente investida pela razão, em sentido estrito ela [a palavra do louco] não existia. Era através das suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas eram o lugar onde se exercia a distinção, mas nunca eram acolhidas ou escutadas” (ibid.: 11)

Extrapolando a figura histórica do louco, pode dizer-se que actualmente esta função é cumprida pelos discursos contracorrente em relação às ideias adquiridas e dominantes. Nomeadamente sobre África, são os discursos que possam desconstruir as ideias estruturantes de uma representação comum e partilhada, nos termos identificados por Mbembe. Ou face ao primeiro procedimento, a exclusão, será hoje a intervenção, nos circuitos com impacto global, os media ou a arte, de vozes antes desautorizadas, porque colonizadas, sem autonomia e sem História, logo sem identidade. 

De que forma os dois discursos artísticos, de Alfredo Jaar e de Pieter Hugo, reclamam “the right to look”, e uma quebra nos procedimentos de exclusão do discurso sobre África, e em particular, sobre o genocídio do Rwanda?

Untitled, de Alfredo Jaar

Alfredo Jaar é artista, arquitecto e cineasta, nascido em Santiago do Chile em 1965 e radicado nos Estados Unidos. Trabalha com vários meios, usando a palavra, o vídeo, a fotografia e frequentemente em formato de intervenção pública nas cidades, através de instalações. O trabalho de Jaar tem sido exibido em todo o mundo. Participou nas Bienais de Veneza (1986, 2007, 2009, 2013), São Paulo (1987, 1989, 2010), bem como na Documenta de Kassel (1987, 2002). A sua obra pode ser encontrada nas colecções do Museu de Arte Moderna e Museu Guggenheim, em Nova Iorque, no MCA, Chicago, MOCA e LACMA, Los Angeles, Tate, Londres, Centro Georges Pompidou, Paris, Centro Reina Sofia, Madrid, do Moderna Museet, Estocolmo, o Museu Louisiana de Arte Moderna de Humlaebeck e dezenas de outras instituições e colecções privadas em todo o mundo. Aborda questões relacionadas com a geopolítica, a guerra, a representação mediática, com uma visão crítica sobre os poderes mundialmente estabelecidos.

O genocídio do Ruanda, país a que se deslocou na época, foi um dos temas mais extensamente tratados na sua obra, tendo o designado Rwanda Project, composto por vários trabalhos[1], ocupado o artista entre 1994 e 2000. O trabalho Untitled consiste em 17 fotografias de capas da revista americana Newsweek, entre 6 de Abril e 1 de Agosto de 1994, cada uma acompanhada de um breve texto onde se descrevem os acontecimentos no Rwanda na respectiva semana. Esteve exposto em diversos locais, entre os quais Goodman Gallery, em Joanesburgo, Galerie Lelong, em Nova Iorque; kamel mennour, em Paris e Galerie Thomas Schulte, em Berlim. Untitled está disponível online, aqui 

[1] A título de exemplo, referimos Rwanda, Rwanda, uma instalação em moopies em ruas de uma cidade sueca apenas com a palavra Rwanda, e The silence of Nduwayezu, centrado na história pessoal de uma criança sobrevivente e órfã, com fotos apenas dele, em exposições em vários locais.

Imagem 1: Exposição Untitled, Alfredo Jaar

O primeiro aspecto que Jaar torna evidente neste trabalho é a invisibilidade da tragédia do Ruanda durante 17 semanas num dos mais importantes órgãos de comunicação social americano. A primeira capa que destaca o acontecimento data de 1 de Agosto. É também a primeira vez que o texto do artista apenas destaca esse facto e nenhum dado sobre o Ruanda. Nas semanas anteriores, os temas mais variados merecem destaque de capa, desde política a celebridades, passando por casos de tribunal e descobertas científicas. Ao lado destas capas, um texto telegráfico dá conta, sempre, do número total de mortes no Rwanda a cada semana e também da questão da intervenção internacional no conflito, nomeadamente as respectivas negociações para a definição e autorização do número de elementos da força de manutenção de paz da ONU, os capacetes azuis, contingente reduzido drasticamente na primeira semana do genocído e apenas reforçado na última. Vejamos alguns exemplos:

Na semana de 12 de Abril, a capa da Newsweek destaca o suicídio de Kurt Cobain, vocalista da banda Nirvana. O texto dá conta da constituição de um governo interino no Rwanda, após a morte do presidente no desastre de avião que despoletou uma semana antes, as matanças, já num total de 25 mil mortos. A primeira referência de Jaar à redução drástica de capacetes azuis no território, de 2500 para 270, refere-se à semana de 21 de Abril, em que a Newsweek destaca descobertas na indústria farmacêutica na área das vitaminas. Quando os mortos atingem a impressionante soma de 100 mil, a capa da Newsweek é dedicada à morte do ex-presidente americano Richard Nixon sem qualquer referência ao Ruanda. Noutra semana, uma efeméride ocupa lugar de destaque na revista: o Dia D (chegada à Normandia das tropas Aliadas na II Guerra Mundial), na mesma semana em que a Frente Patriótica Ruandesa ganha o controlo da capital e os mortos ultrapassam os 300 mil. O tema especulativo da possibilidade de vida em Marte é a chamada de capa a 21 de Julho: o texto informa que as Nações Unidas chegam a um acordo para enviar reforços da força de paz internacional, quando os mortos se estimam já em um milhão. É talvez um dos casos em que a desvalorização daquelas vidas humanas, a que se sobrepõe uma realidade hipotética de existência noutro planeta, se torna mais evidente. O único destaque a um acontecimento africano é a eleição de Nelson Mandela na África do Sul, na semana de 8 de Maio, sem qualquer referência de capa à tragédia que tolhera já, então, 200 mil vidas no Ruanda. Mandela, embora simbolize, por excelência, a afirmação de uma identidade africana pós-colonial e um projecto de nação construída pelos próprios, é, nesta altura, já um consenso internacional, depois de uma história complexa que inclui violações dos direitos humanos sem que tivessem sido por isso visibilizado nos media ocidentais, considerações que não cabe detalhar aqui.

O trabalho de Jaar constitui uma crítica feroz à indiferença da revista perante uma das maiores tragédias do século XX. Desta forma, Jaar dirige o seu olhar, e o do seu público, a um dos principais eixos de constituição do complexo de visualidade contemporâneo, nos termos enunciados por Mirzoeff: os media. Evidenciando simplesmente o contraste gritante entre os destaques de capa da Newsweek e os acontecimentos no terreno, e dada a dimensão avassaladora dos factos, Jaar sublinha a desconsideração desta revista pelos ruandeses comos seres humanos, reforçando os aspectos teorizados por Mbembe de que, aos olhos do ocidente, se trata de uma “otherness” radical o que, em termos humanistas e cidadãos, afirma como intolerável na era da globalização. Por outro lado, chama a atenção para os factos que a revista invisibilizou, reclamando “the right to look” para a realidade do Rwanda, a dimensão humana da tragédia, e para a responsabilidade da comunidade internacional, cujo apoio chegou apenas no rescaldo do genocídio. O facto de não recorrer a imagens para o fazer, mas apenas à linguagem verbal, dá uma força discursiva à sua obra que recusa a exploração de fotografias que poderiam incorrer naquilo que Sontag identifica como o lastro da estética colonial no fotojornalismo moderno, com uma exposição da morte e dos corpos excessiva. Como sintetiza o curador brasileiro Moacir dos Anjos, na sua análise desta obra:

Alfredo Jaar contribui para a criação de uma representação alternativa desse mesmo mundo, contrapondo-se àquelas que ignoram os já excluídos de outras esferas da vida, como a feita pela revista. Contribui, em tarefa partilhada com vários outros artistas, para a criação de uma representação das sobras. Representação contra-hegemônica que aponta e rememora os radicalmente excluídos dos espaços de visibilidade social pela dinâmica política que move o mundo, reclamando para estes a condição de parte (dos Anjos, 2014).

Vestiges of a Genocide e Portraits of Reconciliation de Pieter Hugo

Pieter Hugo nasceu em Joanesburgo, África do Sul, em 1976, vive e trabalha na Cidade do Cabo.  O seu trabalho fotográfico já foi exposto no Hague Museum of Photography, Musée de l’Elysée em Lausanne, Ludwig Museum em Budapeste, Fotografiska em Estocolmo, em  Roma, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, Fondation Cartier Bresson em Paris, na Stevenson Gallery, Cidade do Cabo e na Tate em Londres, entre outros. A sua obra integra as colecções do Museum of Modern Art, V&A Museum, San Francisco Museum of Modern Art, Metropolitan Museum of Modern Art, J Paul Getty Museum, Walther Collection, Deutsche Börse Group, Folkwang Museum and Huis Marseille. Recebeu o Discovery Award, Rencontres d’Arles Festival e o KLM Paul Huf Award em 2008, e ainda o Seydou Keita Award nos Rencontres de Bamako African Photography Biennial, em 2011. Entre os seus trabalhos destacam-se as séries Nollywood, The Hyena and Another Men e This Must be the Place. Sul-africano branco, Pieter Hugo reflecte na sua obra sobre as tensões raciais, diversas formas de exclusão (por exemplo na sua série dedicada aos albinos africanos, The Albino Project), fenómenos urbanos e a intimidade das casas e das relações humanas, na sua imensa diversidade.

Sobre o genocídio do Rwanda, Pieter Hugo tem dois trabalhos, com dez anos de intervalo, no décimo e vigésimo aniversário dos trágicos acontecimentos. Rwanda 2004: Vestiges of a Genocide, de 2004, e Portraits of Reconciliation (2014).

O primeiro, Vestiges of a Genocide é composto por uma série de fotografias dos lastros que encontrou, dez anos após o genocídio, no território, marcas intactas das vidas ceifadas pelo conflito: ossadas, roupas, pinturas de parede vandalizadas, sepulturas colectivas.

Algumas imagens da série disponível aqui

Imagem 2: Roupas de vítimas encontradas na Murambi Technical School onde 50 000 foram assassinadas por milicias Hutu , Murambi

Imagem 3: Cadáveres conservados, encontrados em Murambi Technical College, Murambi, Rwanda, II

Imagem 4: Cabeleireiro/barbearia, pinturas de parede degradadas por milicias hutu, La Mignore, Kigali, Rwanda, I

Imagem 5: Vala comum, Nzega Cell, Gasaka Sector, Rwanda

Gostaríamos de destacar alguns aspectos destas imagens. Não há presença de vida em nenhuma delas, o que acentua por um lado a ideia de morte absoluta e, por outro, a dificuldade em integrar vida na memória de uma tragédia de tamanhas proporções. Fica evidente, também, que muitos destes vestígios não foram removidos, que estão entre a sociedade ruandense, visíveis, como uma chaga aberta, afastando a hipótese, benévola, de que este passado estaria enterrado, dez anos depois.  Ainda, as ossadas e as roupas, na sua despersonalização, apelam a uma ideia de humanidade universal, aproximando qualquer espectador daqueles vestígios. A imagem da sepultura colectiva mostra uma cruz, o que liga aqueles mortos a todo o mundo cristão. As pinturas de parede vandalizadas colocam a questão do olhar, pois são precisamente os olhos que estão amputados na pintura, como forma extrema de retirar a um grupo o poder de existir socialmente.

Esta série produz o efeito de colocar no centro do protagonismo os mortos, os que não podem já falar, os que não puderam, então, falar, portanto, os excluídos, de forma colectiva e indiferenciada. Reclama o direito de lhes dar voz. Recentra o olhar, trazendo-o do conforto retrospectivo da memória para o presente da tragédia, ao mostrar os remanescentes do momento. Em termos do enunciado de Foucault, Pieter Hugo inverte o interdito e questiona a loucura que parte do discurso público mundial atribuiu a este conflito, situando-o em valores religiosos partilhados por milhões de pessoas em todo o globo. Questiona o regime de visualidade mediático que expôs os horrores, apenas no momento em que ocorreram, na lógica estrita da actualidade, colocando em evidência a permanência de uma dor colectiva que atravessou um país, com consequências a longo prazo. Neste caso, a expressão artística fotográfica, sem recurso a palavras, evidencia o inexpressável. Numa entrevista ao jornal The Guardian, em 2009, Pieter Hugo afirmou que estas fotografias focam “that which we do not want to look at”, e expressou também as suas reservas quanto ao seu poder representativo: “I have a deep suspicion of photography, to the point where I sometimes think it cannot accurately portray anything, really.”

A segunda série aqui considerada, Portraits of Reconciliation, foi realizada em 2014, vinte anos depois do genocídio, e são retratos de duplas de perpetrador/vítima, pessoas integradas no programa de reconciliação da organização sem fins lucrativos Association Modeste et Innocent. Foram expostas em outdoors em Haia, na Holanda, numa iniciativa da organização Creative Court para assinalar os vinte anos do genocídio. Um conjunto de fotografias foi publicado no New York Times, acompanhado de testemunhos dos próprios intervenientes.

Algumas imagens, do New York Times, disponíveis aqui

Imagem 7: Deogratias Habyarimana, Perpetrator (direita), Cesarie Mukabutera, Survivor (esquerda). O presidente Kigame apelou aos condenados do genocídio para pedirem perdão às vítimas, com efeitos de redução da pena. Confessou à vítima ter participado no assassinato dos seus filhos, facto que esta desconhecia.

Jean Pierre Karenzi, perpetrator (esquerda),Viviane Nyiramana, Survivor (direita). Matou-lhe o pai e os irmãos. Cumpriu pena na prisão e frequentou um programa de unidade e reconciliação. Pediu perdão e ajudou a reconstruir a casa.

Este trabalho de Pieter Hugo está enquadrado numa iniciativa local com contornos específicos, que promoveu a reconciliação entre vítimas e perpetradores. As imagens resultam, portanto, de um processo onde há intervenientes externos e são retratos em pose de duas pessoas que, normalmente, não se juntariam. Poder-se-ia dizer que são portanto imagens produzidas ou artificiais e são-no, em certa medida, não deixando no entanto de registar um acontecimento real e muito significativo, a aproximação, ainda que temporária e variavelmente profunda, entre pólos opostos de um conflito marcado por um genocídio de grandes dimensões.

O primeiro aspecto a destacar é que esta série contraria, de forma expressiva, a imagem de negatividade que paira sobre o continente, mostrando uma faceta de paz e reconstrução. Opõe-se à narrativa dominante de um continente em guerra permanente, mostrando diacronicamente a evolução de um processo. O processo de reconciliação é dado, exclusivamente, pelos protagonistas, que se apresentam numa certa simplicidade, digna, activa, de aparente bem-estar físico, em alguns casos com expressões de afectividade, sem qualquer contexto estatal ou oficial, nacional ou internacional. Mais uma vez, à semelhança do que acontece na série Vestiges of the genocide, estas imagens apelam a um sentido de humanidade universal: as pessoas, simplesmente, desenquadradas de instituições ou símbolos. No entanto, esta série individualiza casos e a sua força expressiva resulta da singularização.

Considerações finais

Ambos os artistas afirmam “the right to look” sobre o genocídio do Ruanda: no caso de Alfredo Jaar, por uma crítica à imprensa e à política ocidental sobre África, focando-se num caso extremo de invisibilidade do acontecimento, dando simultaneamente, na mesma obra, a dimensão da tragédia e da imobilidade internacional; no caso de Pieter Hugo, por construir uma representação do genocídio, em dois momentos, que destaca não só a dimensão dos factos e a sua gravidade humanitária, mas também enfatiza a universalidade do drama e devolve ao território e aos seus cidadãos o protagonismo e a subjectividade, sem recorrer a qualquer exploração estética do horror, optando antes por imagens sóbrias, até belas, que não deixam de passar uma mensagem fundamental sobre um acontecimento que a todos, globalmente, interpela. Os artistas recusam, os dois, os mecanismos de exclusão do discurso enunciados por Foucault, de forma expressiva.

Ambos os artistas questionam pois, uma noção de humanidade e um espectro de valorização dos eventos, centrados na perspectiva ocidental do mundo, colocando o Rwanda no mapa mental de um público que - pelo prestígio e reconhecimento alcançados com as suas obras e entrada nos principais circuitos da arte mundial - é essencialmente estrangeiro à tragédia do Rwanda. Retomando a noção inicialmente proposta para esta Summer School, “cultural citizenship”, entendida como “a roadmap to the future, couched in the claim of a new civil contract sponsered by the arts”, pode afirmar-se que Alfredo Jaar e Pieter Hugo contribuem, no que diz respeito ao genocídio do Ruanda, para uma visão mais global sobre um conflito predominantemente lido à luz de lugares-comuns que apenas promovem distanciamento.

Susan Sontag, na obra citada, reflecte criticamente sobre outra obra sua, On Photography, onde defendeu que o excesso de imagens no mundo moderno pode promover empatia mas também apatia. Pergunta-se, posteriormente, sobre a validade deste pressuposto.

"That we are not totally transformed, that we can turn away, turn the page, switch the channel, does not impugn the ethical value of an assault of images. It is not a defect that we are not seared that we do not suffer enough, when we see that images. Neither is the photograph supposed to repair our ignorance about history and causes of the suffering it pick out and frames. Such images cannot be more than an invitation to pay attention, to reflect, to learn, to examine the rationalizations for mass suffering offered by established powers. What caused what the picture shows? Who is responsible? It is excusable? Was it inevitable? Is there some state of affairs accepted up to now that ought to be challenged? All this, with the understanding that moral indignation, like compassion, cannot dictate a course of action" (Sontag, 2003: 104).

Reconhecendo assim que o campo da representação não é, de todo, coincidente com o campo de acção (embora o possa afectar), a ensaísta pondera no entanto o problema das imagens do sofrimento longe da simples diabolização da fotografia, valorizando o potencial de reflexão aberta por esta. E acrescentaríamos: se noutros âmbitos, como o da produção mediática, os códigos e as velocidades condicionam essa produção de forma mais estrita, estando também sujeita mais facilmente às lógicas hegemónicas, talvez a arte, na criação de imagens ou na sua crítica, possa trazer um contributo efectivo, em termos de cidadania, não só para pensarmos tragédias como o genocídio do Rwanda mas também para sermos capazes de nos relacionarmos de forma mais ética com as próprias imagens. 

Bienal de Havana 2015

Publicado1 Jul 2015

Etiquetas Bienal de Havana cuba

A Bienal de Havana 2015 decorreu de 22 de Maio a 22 de Junho, subordinada ao tema "Entre la Idea y la Experiencia", apresentando trabalhos de artistas de 40 países. Pode ler-se na proposta curatorial:

El arte ha trascendido las limitaciones epistemológicas inherentes a otras disciplinas, su condición simbólica le permite determinadas licencias a la hora de imbricar saberes. Por eso, más que nombrar las prácticas, nos interesa acompañar procesos de creación transdisciplinarios y de intermediación que impliquen colaboraciones tanto investigativas como de carácter pedagógico.

Sigue siendo hoy un ejercicio estéril instaurar conceptos preconcebidos de lo que entendemos por arte. La percepción colectiva se transforma en los desafíos y las incertidumbres que genera la experiencia; donde se abren nuevos horizontes culturales y se crean otras maneras de sociabilidad y de interconexión. Los proyectos que se realicen en La Habana deberán incidir en sus moradores bien sea porque estos participen en su concepción y realización o porque las obras se presenten como laboratorio social vivo. Deseamos que las diversas escalas del tejido urbano: las universidades, los centros de investigación y todo aquello que haga posible la integración, puedan utilizarse como emplazamiento y material de trabajo.

Al tomar como referencia esta proyección estamos interesados en propiciar las intersecciones entre diferentes expresiones artísticas como la danza, el teatro, la música, el cine y la literatura, a partir de la riqueza semántica que aporta la hibridez en aquello que entendemos como visualidad. La idea esencial es que estos cruces no sean un simple telón de fondo sino que adquieran una presencia protagónica. De ahí nuestro interés en extender una invitación para la confluencia de artistas y especialistas de otras disciplinas.

Texto completo aqui

Explorando o processo de colaboração e interdisciplinaridade, a Bienal  ocupou a cidade, transformando-a numa galeria de arte a céu aberto, com obras em cinemas, praças, parques, museus e esquinas, como se pode ver na galeria fotográfica do Jornal El Pais.