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Alberto da Costa e Silva vence Prémio Camões

Publicado30 Out 2014


Alberto da Costa e Silva, 83 anos, poeta, diplomata, ensaísta e historiador brasileiro, recebeu, esta quarta-feira, dia 29 de Outubro, o Prémio Camões, que distingue personalidades culturais e literárias de língua portuguesa. Reconhecido como um dos maiores africanistas do Brasil, foi embaixador na Nigéria e no Benin, período em que viajou bastante por África. Da sua autoria são as obras "A enxada e a lança: a África antes dos portugueses” (1992), “A manilha e o libambo: a África e a escravidão” (2002) e “Um rio chamado Atlântico” (2005).

— Nesta época, o que aconteceu é que me apaixonei pelo traçado da África, e me ocupei com devoção integral ao continente africano nas horas cansadas após o trabalho diário de diplomata, ao qual também devotei todo meu empenho — disse. — Me sinto próximo, assim, ao enorme Camões, poeta que também viajou pelo litoral africano, viveu intensamente o seu tempo, também foi um historiador a seu modo e conseguiu unir memória e imaginação. Sinto que, talvez, não escrevamos apenas para justificar a nossa existência, nem para registrar o que vivemos, mas para que não se percam as imagens que um dia vimos e que jamais se repetirão.

Texto completo, no Jornal O Globo

Em 2009, o jornal do Próximo Futuro, o primeiro, publicava um texto de Alberto da Costa e Silva, sobre a relação entre África e o Brasil. 


A  ÁFRICA  E  O  BRASIL

Alberto da Costa e Silva

Era raro o dia, no século XVIII e na primeira metade do XIX, em que não saía dos portos brasileiros um barco para o litoral africano ou neles não ancorava um navio de volta.    

Durante mais de 350 anos, o Atlântico de tal modo aproximou as costas africana e brasileira, que essas foram ficando semelhantes. Nos dois lados, podia-se ver os mesmos coqueiros, os mesmos cajueiros, as mesmas bananeiras, as mesmas roças de milho, os mesmos mandiocais. As plantas iam e vinham nos navios a serviço do comércio de escravos. E também costumes, maneiras de vestir, técnicas, tradições, crenças e valores.

Se, no Brasil, até o fim do Oitocentos, os modos de vida portugueses e europeus dominavam o foro e as salas de visitas, o africano prevalecia na cozinha, no quintal e na rua. Atos e gestos dos mais pessoais eram expressos por palavras africanas, e muitas delas se incorporaram à língua portuguesa e são, hoje, de uso quotidiano, como, por exemplo, babá, bagunça, caçula, cafuné, cochilo, dengo, encabulado, lengalenga, quitute, tanga, fungar, xingar e zangar. Mas, enquanto nas casas brasileiras, ao lado do cozido e das iscas de fígado, se comiam o acarajé, o caruru e o efó, não faltavam em muitas mesas do golfo do Benim o pirão, a farofa e a cocada. Pois, assim como a África - para repetir a frase de um grande estadista do Império, Bernardo Pereira de Vasconcelos - civilizava a América, o Brasil influenciava o dia-a-dia de vários povos africanos.

 Esse intenso processo de trocas culturais foi interrompido, na passagem do século XIX para o XX, quando as potências européias assumiram o controle colonial da África. Cessaram as ligações marítimas diretas entre o Brasil e o continente africano. E este saiu das preocupações brasileiras. Comparem-se os relatórios do Ministério do Exterior brasileiro: nos do Império, em alguns anos, o número de páginas dedicado à África só é menor do que o que tem por assunto a Bacia do Prata; já nos da República, até o fim da Segunda Guerra Mundial, quando muito consta um parágrafo sobre aquele continente.

           

Nenhuma cidade do mundo - escreveu Luís da Câmara Cascudo - está mais presente nas cantigas brasileiras do que Luanda. No entanto, até não muito tempo, poucos dos que as entoavam seriam capazes de localizar a cidade no mapa. Na geografia de todos os dias, a África ficara reduzida aos pontos de escala e reabastecimento de navios e aviões - a Dacar, à Cidade do Cabo e às Ilhas de Cabo Verde.  Num outro plano, porém, o da fé, da imaginação e do sonho, persistiu em muitos brasileiros uma África mítica, uma construção da saudade e da esperança dos que de lá tinham sido arrancados. Essa África ficara dentro de nós, como coisa nossa, misteriosa e íntima.

É fácil compreender, por isso, que o fim do domínio colonial viesse acompanhado pelo sabor do reencontro. Após um intervalo de mais de meio século, podia-se restabelecer um diálogo com o continente africano sem intermediários europeus.

Com eles a servirem de hífen, já havia, entretanto, o Brasil iniciado entendimentos com os principais produtores africanos de café e cacau. E seriam os interesses econômicos, mais que as efusões da afetividade, que dariam impulso às novas conversações entre as duas margens do Atlântico.

Quase a anunciar que assim seria, a diplomacia brasileira, já em 1957, logo a seguir à independência de Gana, teve a iniciativa de propor nas Nações Unidas a criação da Comissão Econômica para a África.

Os primeiros gestos foram também políticos - e simbólicos. O Brasil voltava a ter a África atlântica como sua fronteira leste, e uma fronteira que se queria viva. Prontamente, o país reconheceu os novos Estados africanos e esteve presente em quase todas as cerimônias de acesso à independência. Não demorou em ter embaixadas em vários deles, em enviar ao continente missões comerciais, em dele receber estudantes e para ele enviar professores. Em alguns desses países, descobriram, emocionados, uma forte presença do Brasil, na arquitetura, nos costumes, nas festas e, sobretudo, nas pessoas dos descendentes de ex-escravos que haviam retornado à África, se afirmavam brasileiros e tinham sobrenomes como Souza, Costa, Rocha ou Medeiros. Nas possessões portuguesas, circulavam revistas brasileiras, liam-se livros de autores como Jorge Amado, José Lins do Rego, Manuel Bandeira e Jorge de Lima, e se ouviam as emissoras de rádio do Rio de Janeiro e do Recife.

Nos primeiros dias de 1961, os brasileiros acolheram festivamente o imperador da Etiópia, Hailé Selassié. Três anos depois, Léopold Sedar Senghor, do Senegal, seria o segundo chefe de Estado africano a ser recebido oficialmente no Brasil.  As trocas de visitas de ministros tornaram-se rotina. Faltava, porém, a grande festa do reencontro.

Esta se deu em 1972, quando Mario Gibson Barboza, ministro do exterior do Brasil, visitou Costa do Marfim, Togo, Daomé (atual República do Benim), Nigéria, Camarões, Gabão, Zaire (atual República Democrática do Congo), Senegal e, pouco depois, o Quênia. Se durante a viagem, assinaram-se importantes acordos entre esses países e o Brasil - e alguns deles criaram as bases para um grande salto nas relações econômicas, que faria da Nigéria, por exemplo, durante dez anos, o 4º ou 5º parceiro comercial do Brasil -, ela foi principalmente uma explosão de alegria, a demonstrar que os brasileiros não chegavam à África como estranhos, nem como tais eram recebidos.  

A fase de euforia estendeu-se até por volta de 1983, quando se tornaram visíveis a crise econômica e, pior ainda, a crise política que se abatiam sobre o continente. Se a economia africana emagrecia, a brasileira estacionava. Reduziram-se as iniciativas, e as relações entre o Brasil e os países africanos - excetuados os de língua portuguesa, com os quais elas continuaram a expandir-se - pareciam marcar passo.

Cinco lustros depois, mudou a África e mudou o Brasil. E a África voltou a ter um lugar de relevo na atenção brasileira, como a vizinha de frente, na outra margem do rio. Uma vizinha com laços de família.

 Jornal do Próximo Futuro, nº 1, Abril 2009