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Próximo Futuro

António Pinto Ribeiro (Junho 2009)

Próximo Futuro é um Programa Gulbenkian de Cultura Contemporânea dedicado em particular, mas não exclusivamente, à investigação e criação na Europa, em África, na América Latina e Caraíbas.

Podemos intervir no futuro, no próximo futuro? Podemos, certamente. Não no sentido de o determinar, moldar, profetizar, ou encalhar numa utopia ou numa distopia. Mas sabemos que cada um de nós incidentalmente, ou todos em conjunto, nas decisões diárias, nos actos, nos episódios, nas ficções construídas, nas actualizações do real que produzimos, estamos a interferir no futuro. E, em alguns casos, e para o futuro mais próximo, até estamos habilitados a estabelecer previsões, ou seja, a construir extensões racionalizadas do presente, representações mais ou menos optimistas conforme a avaliação que dele fazemos e conforme o desejo de intervirmos para o acautelar. O futuro existe e, apesar da imprevisibilidade e do acidente, podemos intervir para que nem tudo seja informação sem destinatário, actividade sem desejo de realização.

O Modernismo, que continua a ser uma arqueologia da actualidade, inventou a noção cultural de que era possível ser mais veloz que o próprio futuro; juntamente com a tecnologia e a ciência e com a ruptura com os cânones, quis submeter o tempo ao espaço, gerando uma energia criativa invulgar. O Pós-Modernismo por seu lado, veio desacelerar essa energia e, acrescentando a difusão do tempo e do espaço e terminando com as grandes narrativas, insistiu muito no presente e na actualidade, que adquiriram um estatuto de categoria que condicionou projectos e programas, assim como a operatividade de conceitos. Fascinante pelos seus contrastes, a pós-modernidade conduziu tudo ao limite e nas suas contradições relegou para o mercado e para a espectacularidade das imagens todas as visões (!) possíveis sobre o futuro.

Guy Débord teve razão antes do tempo e, o filme de Ridley Scott, “Blade Runner”, foi visionário, as Torres Petronas, em Kuala Lumpur, materializam a obsessão pelo record, pela ultrapassagem, e “Still/Here”, de Bill T. Jones, foi a coreografia sobre a luta vencedora contra a morte; todos eles são testemunhos da urgência imposta à condição humana neste período da história. Vivemos já no século XXI, é um facto; a globalização é outro facto. E a estes dois factos que balizam a vida actual - os países, a economia, as práticas culturais, a disseminação das artes - e que alteraram o mundo como nós o conhecíamos há vinte anos atrás, outros devem ser acrescentados, que enquadram o tempo e o espaço contemporâneos. Um pequeno conjunto desses factos, listados por Fareed Zakaria em “The Post American World” (2008), diz-nos como o século XXI é outro: em 2006 e 2007, 124 países cresceram a uma taxa de 4%, ou superior, número que inclui mais de trinta países de África, o que representa 2/3 do continente; das 25 empresas mais promissoras, 4 são, respectivamente, do Brasil, do México, da Coreia do Sul e de Taiwan, 3 são da Índia, 2 da China, 1 da Argentina, 1 do Chile, 1 da Malásia e outra da África do Sul; ao passo que o maior centro comercial do mundo está agora na China. A par deste conjunto de indicadores enumerados, pelo editorialista da Newsweek, muitos outros poderiam ser invocados, como a alteração dos produtores dos media, a disseminação de objectos, marcas e músicas provenientes do Japão, da China, bem como do Brasil, da África do Sul ou da Nigéria, a emergência de novos coleccionadores de arte - mexicanos, brasileiros, russos, chineses - acompanhada pela emergência de exposições de arte contemporânea de artistas de países exteriores aos tradicionais circuitos da produção artística, como a China, o Brasil e países do Médio Oriente, que ocupam prestigiados espaços expositivos em Londres, Berlim e Nova Iorque. Algumas das melhores e mais inovadoras companhias de teatro, como a Handspring Puppet Company, vêm de cidades como Joanesburgo e, a terceira cidade do mundo onde se produz mais filmes, é Nollyood, na Nigéria.

As pessoas deslocam-se e os seus fluxos e os dos bens são permanentes, aumentam todos os dias e alteram-se as suas direcções: actualmente, são mais os portugueses que imigram para Angola, do que os angolanos para Portugal. Lojas chinesas encontram-se tanto em Lisboa como em Maputo ou no Mindelo e a maioria dos artistas mais cotados das galerias de Chelsea são das diásporas latino-americanas, chinesas e do médio-oriente. O Mundo está diferente e isso implica uma responsabilidade maior para os que nele têm capacidade de intervenção. Há uma personagem de “À Espera dos Bárbaros”, de J.M. Coetze, que diz «Há qualquer coisa a meter-se-me pelos olhos dentro e ainda não consegui ver o que é».

Mesmo assim, ou por isso mesmo, é fundamental estar disponível para o que vem, na sua estranheza e na sua imprevisibilidade, e as crises são momentos cruciais para a intervenção que modifica, altera, recoloca as questões centrais. Foi graças a este espírito que os estudos pós-coloniais – hoje já alojados nas universidades e já sem a carga de algum panfletarismo que, necessariamente, tiveram no seu início - que nós europeus nos redescobrimos, na construção de outras narrativas mais justas sobre a história e, sobretudo, na possibilidade que nos é agora dada de beneficiar da memória e da conciliação. E aqui a importância das novas narrativas – que no caso dos países da América Latina e Caraíbas já começaram há mais tempo e que, no caso de África e em alguns países de Oriente, são mais recentes – é fulcral para agir no futuro próximo.

De uma forma geral, e mesmo em situações conturbadas, estas novas narrativas surgidas das independências transportam com elas uma energia e uma vitalidade raras. São elaboradas por populações e criadores de países à procura de construírem novas identidades e, com elas, novas formas de representarem e viverem o mundo. Não são países perfeitos, nem paradisíacos. Em muitos deles há guerra, corrupção, racismo e xenofobia, mesmo entre africanos, ou ressentimentos, entre povos latino-americanos. Mas, que sabemos nós das suas realidades e das suas razões para os julgarmos tão apressadamente, como é regra geral? Sabemos pouco e é fulcral sabermos muito mais.

Próximo Futuro é um Programa Gulbenkian de Cultura Contemporânea criado em 2009. De algum modo, surge na sequência dos Programas O Estado do Mundo e Distância e Proximidade, bem como de outras iniciativas directamente relacionadas com os temas da mobilidade das pessoas e da criação artística internacional. Realizando-se depois do agendamento de algumas questões colocadas pelos anteriores, este Programa não será focado exclusivamente na interculturalidade, porque esse tema foi colocado na devida altura pela F.C.G., na agenda nacional e, desse modo, passou a fazer parte da realidade sociológica, política e cultural, portuguesa, com possíveis contornos. Mas, mesmo não referido explicitamente, ele não deixa de contaminar culturalmente a actividade diária ou sazonal da programação artística contemporânea, tal como a globalização ou os efeitos da tecnologia digital e da comunicação de massas. Contudo, excesso de focalização perverte. por vezes. as boas intenções e pode banalizar o tema ou encerrá-lo num gueto, o que é pior.

Próximo Futuro que, aliás, à semelhança de outros programas, curadorias e bienais, elege o tempo como substantivo da actividade, é um Programa cultural de cautela e de intervenção. Nesse sentido, tem objectivos muito próprios: reflectir sobre o que é hoje a contemporaneidade e como ela se expressa e actua na representação da produção artística e cultural; contribuir para a redefinição das identidades, dos novos fluxos, quer de mercado, quer de pessoas, e das novas centralidades, em particular da importância definitiva que as cidades nesta época de transnacionalidade adquirem. A este propósito, este Programa elegeu como áreas culturais de visibilidade, mas não exclusivamente, a relação entre a produção e a criação contemporâneas em cidades de África, da Europa, da América Latina e das Caraíbas. Os dois eixos de trabalho principais serão elaborados, um, a partir da investigação e da produção teóricas, através de workshops, seminários e grandes lições, a realizar em colaboração com Centros de Investigação de excelência, nacionais e internacionais, e, o outro, assentará na produção e na programação artísticas, capazes de estabelecer as tensões ou os entendimentos ou, por vezes, só a visibilidade de actores destas regiões culturais.

A Fundação Calouste Gulbenkian – na sede, em Lisboa, e nas suas representações em Londres e em Paris - pode assim constituir-se numa plataforma europeia para um conhecimento novo e assumir-se como instituição de referência na constelação cultural internacional. Para isso, vai intervir no próximo futuro, cremos, em termos de produção de conhecimento e de criação do que há-de vir. Intervir não implica, necessariamente, fazer a Revolução; por vezes, basta a eficácia da pequena, mas subtil mudança. Ninguém melhor para explicar essa subtil mudança do que Walter Benjamin, nesta versão da parábola sobre o outro mundo «Os Chassidim contam uma história sobre o mundo por vir, que diz o seguinte: Lá, tudo será precisamente como é aqui; como é agora o nosso quarto, assim será no mundo que há-de vir; onde agora dorme o nosso filho, é onde dormirá também no outro mundo. E aquilo que trazemos vestido neste mundo é o que vestiremos também lá. Tudo será como é agora, só que um pouco diferente»|1|. Agora começamos com a investigação e a produção teórica e daremos a ver a estranheza e a alegria das artes.

|1|-Citado por AGAMBEN, Giorgio - A comunidade que vem, 1ª ed., Lisboa: Presença, 1993, p. 44.

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