"Paradoxos da ‘oferta cultural’"
Publicado21 Fev 2015
Paradoxos da ‘oferta cultural’
António Pinto Ribeiro*
O estado geral da criação artística, principalmente da sua apresentação, difusão e recepção, traduz-se hoje em grandes dicotomias. Há por um lado um excesso de ‘oferta cultural’ nas metrópoles ocidentais e por outro lado uma míngua de actividades artísticas nas cidades do interior e nas periferias. No caso da ‘oferta cultural’ das metrópoles, a situação é de desorientação total, que se traduz, entre outros aspectos, numa relativização total da apresentação das obras, sejam elas performativas ou visuais. Aparentemente tudo é válido, tudo tem um valor semelhante, desde que apareça no espaço mediático e seja quantificado: quer por número de espectadores, quer pela quantidade de likes no facebook.
Gostava de ser mais preciso nos termos que agora uso: criação, apresentação, difusão e recepção artística.
Isto para suspender por momentos a terminologia corrente e reflectir sobre ela: consumidores culturais, consumo cultural, marketing, turismo cultural etc… porque a entrar por este universo terminológico não há retorno possível da lógica do consumo. Entramos de imediato na quantificação, num registo com uma lógica que privilegia o consumidor, essa figura nascida como a figura imposta após a Queda do Muro de Berlim, globalizada, que se apropriou de todas as categorias clássicas da modernidade e até pré-modernas: espectadores, criações, artistas, óperas, mecenas foram todas substituídas pela figura do consumidor tout court, que é o protagonista de tudo o que faz parte da cadeia dos mercados globais.
Nesta terminologia globalizada e neoliberalizada (o neoliberalismo impôs-se pela linguagem e apropriou-se do universo artístico, não lhe deixando qualquer exterior) o consumidor consomee consome tudo com o mesmo espírito com que consome o resultado da exploração dos recursos naturais.
Mas se eu recuar para uma linguagem anterior que tem a energia da modernidade, eu entendo como o que era mecenato se transformou em marketing e como os festivais, as óperas, os filmes não são outra coisa senão cabides de promoção das marcas (em especial operadores de telecomunicações e empresas de bebidas) cujo único objectivo é o apelo ao consumo dessas marcas e por isto a chamada oferta cultural não é senão – quase sempre- a espectacularização do mercado.
Disto resultou o sentimento geral de desorientação programática ficando-nos a sensação de que se perdeu a razão, o motivo, a justificação para a recepção do acto criativo. E esta desorientação nas grandes metrópoles vai a par de um excesso de oferta, seja ela de festivais, espectáculos, cinemas, traduzida numa bulimia, num consumo permanente que vai ficar registado como a imagem do princípio deste século e que é a do espectador consumido pipocas, bebendo cerveja ou enviando mensagens por telemóvel, enquanto assiste aos filmes, aos concertos ou se senta numa plateia de teatro. E se porventura alguém questionar a atitude deste espectador, ele responderá com certeza que pagou o seu bilhete e que por isso se pode comportar como quiser. O interesse democrático da defesa do consumidor tornou-se paradoxalmente na condenação do acto de recepção artística.
Pode parecer moralista esta avaliação do estado geral da apresentação e recepção artística, mas o objectivo é analisar as razões desta desorientação das programações artísticas onde impera a ideia de que toda a criação artística deve ser do agrado do consumidor.
Este situação não é específica do universo das artes – este não é um ilha isolada - e corresponde ao estado das sociedades globalizadas.
Na sua obra A sociedade do cansaço, o filósofo coreano Byung-Chul Han evoca Kafka que numa particular interpretação do mito de Prometeu profetizou: “Os deuses cansaram-se, as águias cansaram-se, a ferida fechou-se de cansaço”.
Sociedade do cansaço, pois, associado a uma desatenção generalizada, como se o défice de atenção já não fosse uma doença de alguns, mas a condição comum a todos, devido ao excesso de estímulos de informação.
No início da revolução tecnológica na década de sessenta, muitos foram os autores crentes no facto de que as máquinas, substituindo muitas das funções dos trabalhadores, contribuiriam para a redução das horas de trabalho e o aumento de horas de lazer dos trabalhadores. Não previram que o capitalismo assenta numa lógica de acumulação permanente e desenfreada do lucro e que se as máquinas vieram reduzir as horas de trabalho, a avidez do lucro impôs mais consumo e por isso maior necessidade ao trabalhador de trabalhar mais. Trabalha-se demais e “toda a actividade humana está sujeita a uma agitação permanente, e o ser humano foi obrigado a degradar-se, a transformar-se num animal laborans, um animal trabalhador” afirma Byung-Chul Han a partir de Hanna Arendt. O que foi o princípio da emancipação dos trabalhadores no início do séc. xx transformou-se numa agitação permanente. Ninguém está parado, mas “a pura agitação não gera nada de novo. Reproduz e acelera o já existente” (Byung-Chul Han). Isto explica o consumo bulímico dos consumidores da produção cultural deste animal laborans hiperactivo e hiperneurótico (Byung-Chul Han).
Mas tem de ser necessariamente assim? Há algum modo alternativo que combine a condição de receptor artístico com a de ser humano vivendo na era da globalização e dentro de um sistema capitalista sem alternativa à vista?
No que aqui nos diz respeito, ao universo artístico, talvez seja possível que, da responsabilidade de quem oferece – do programador, do director do teatro ou do Festival – reduzir a quantidade da apresentação das obras e, em segundo lugar, criar plataformas diferenciadas para as obras a apresentar (mais experimentais, mais expressamente minoritárias, mais lentas ou mais velozes). Colocar-se-á aqui o problema do acesso democrático a todos os que querem criar, mas é exactamente aqui que convém considerar – do ponto de vista do programador e da sua escolha – uma hierarquia de pertinência numa dada época e num dado lugar. Para o receptor a democracia existe na medida em que este possa escolher, da multiplicidade de ofertas, a que mais lhe interessa.
Assim, ao reduzir esta ansiedade de tudo programar, de programações permanentes, hiperactivas, hiperpublicitárias, talvez seja possível desviar a atenção do receptor para o acto de recepção e não só do consumo. Onde há espectáculos a mais, onde há exposições a mais, onde há festivais em demasia é preciso repensar as políticas culturais. Este não é o modelo a importar das grandes metrópoles, não é um modelo de desenvolvimento. Se admitirmos que, a par do consumo permanente, há também e cada vez mais uma valorização do trabalho cognitivo, admitiremos pois a necessidade das programações minoritárias e exultemos com elas e com os tempos de silêncio ou de inactividade que podem existir entre dois espectáculos, entre duas exposições e experimentemos encontrar outros destinatários capazes de construírem o bem comum (António Negri). O bem comum não é uma utopia, um projecto político de construção de uma sociedade a partir do zero. É uma hipótese de trabalho que está para lá das organizações dos partidos tradicionais, dos sindicatos tradicionais, dos públicos tradicionais, das formas esclerosadas da democracia. O Comum (ainda Negri) revela-se na cooperação social, que requer cada vez mais trabalho intelectual onde a vida activa e a vida contemplativa possam existir. O bem comum traduz-se na necessidade de que as pessoas participem e no caso concreto da recepção artística traduz-se em manter uma tensão sobre o conhecimento – de que as artes são modos específicos – entre quem programa e quem está disponível para receber: umas vezes a favor, outras vezes contra. Sendo assim, talvez seja possível, em parte, desocupar o consumo de todo o espaço público e criar uma cena artística não é um shopping center de espectáculos ou de exposições. Numa cena artística as pessoas estão no centro, a qualidade da vida e as tensões entre a vida e a arte são a razão de ser da sua existência.
*comunicação apresentada no Colóquio de Arte em Rede no Teatro Azul em Almada no dia 12 de Fevereiro de 2015