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"Paradoxos da ‘oferta cultural’"

Published21 Feb 2015

Tags oferta cultural opinião antónio pinto ribeiro

Paradoxos da ‘oferta cultural’

António Pinto Ribeiro*

O estado geral da criação artística, principalmente da sua apresentação, difusão  e recepção, traduz-se hoje em grandes dicotomias. Há por um lado um excesso de ‘oferta cultural’ nas metrópoles ocidentais e por outro lado uma míngua de actividades artísticas nas cidades do interior e nas periferias. No caso da ‘oferta cultural’ das metrópoles, a situação é de desorientação total, que se traduz, entre outros aspectos, numa relativização total da apresentação das obras, sejam elas performativas ou visuais. Aparentemente tudo é válido, tudo tem um valor semelhante, desde que apareça no espaço mediático e seja quantificado: quer por número de espectadores, quer pela quantidade de likes no facebook.

Gostava de ser mais preciso nos termos que agora uso: criação, apresentação, difusão e recepção artística.

Isto para suspender por momentos a terminologia corrente e reflectir sobre ela: consumidores culturais, consumo cultural, marketing, turismo cultural etc… porque a entrar por este universo terminológico não há retorno possível da lógica do consumo. Entramos de imediato na quantificação, num registo com uma lógica que privilegia o consumidor, essa figura nascida como a figura imposta após a Queda do Muro de Berlim, globalizada, que se apropriou de todas as categorias clássicas da modernidade e até pré-modernas: espectadores, criações, artistas, óperas, mecenas foram todas substituídas pela figura do consumidor tout court, que é o protagonista de tudo o que faz parte da cadeia dos mercados globais.

Nesta terminologia globalizada e neoliberalizada (o neoliberalismo impôs-se pela linguagem e apropriou-se do universo artístico, não lhe deixando qualquer exterior) o consumidor consomee consome tudo com o mesmo espírito com que consome o resultado da exploração dos recursos naturais.

Mas se eu recuar para uma linguagem anterior que tem a energia da modernidade, eu entendo como o que era mecenato se transformou em marketing e como os festivais, as óperas, os filmes não são outra coisa senão cabides de promoção das marcas (em especial operadores de telecomunicações e empresas de bebidas) cujo único objectivo é o apelo ao consumo dessas marcas e por isto a chamada oferta cultural não é senão – quase sempre- a espectacularização do mercado.

Disto resultou o sentimento geral de desorientação programática ficando-nos a sensação de que se perdeu a razão, o motivo, a justificação para a recepção do acto criativo. E esta desorientação nas grandes metrópoles vai a par de um excesso de oferta, seja ela de festivais, espectáculos, cinemas, traduzida numa bulimia, num consumo permanente que vai ficar registado como a imagem do princípio deste século e que é a do espectador consumido pipocas, bebendo cerveja ou enviando mensagens por telemóvel, enquanto assiste aos filmes, aos concertos ou se senta numa plateia de teatro. E se porventura alguém questionar a atitude deste espectador, ele responderá com certeza que pagou o seu bilhete e que por isso se pode comportar como quiser. O interesse democrático da defesa do consumidor tornou-se paradoxalmente na condenação do acto de recepção artística.

Pode parecer moralista esta avaliação do estado geral da apresentação e recepção artística, mas o objectivo é analisar as razões desta desorientação das programações artísticas onde impera a ideia de que toda a criação artística deve ser do agrado do consumidor.

Este situação não é específica do universo das artes – este não é um ilha isolada - e corresponde ao estado das sociedades globalizadas.

Na sua obra A sociedade do cansaço, o filósofo coreano Byung-Chul Han evoca Kafka que numa particular interpretação do mito de Prometeu profetizou: “Os deuses cansaram-se, as águias cansaram-se, a ferida fechou-se de cansaço”.

Sociedade do cansaço, pois, associado a uma desatenção generalizada, como se o défice de atenção já não fosse uma doença de alguns, mas a condição comum a todos, devido ao excesso de estímulos de informação.

No início da revolução tecnológica na década de sessenta, muitos foram os autores crentes no facto de que as máquinas, substituindo muitas das funções dos trabalhadores, contribuiriam para a redução das horas de trabalho e o aumento de horas de lazer dos trabalhadores. Não previram que o capitalismo assenta numa lógica de acumulação permanente e desenfreada do lucro e que se as máquinas vieram reduzir as horas de trabalho, a avidez do lucro impôs mais consumo e por isso maior necessidade ao trabalhador de trabalhar mais. Trabalha-se demais e “toda a actividade humana está sujeita a uma agitação permanente, e o ser humano foi obrigado a degradar-se, a transformar-se num animal laborans, um animal trabalhador” afirma Byung-Chul Han a partir de Hanna Arendt. O que foi o princípio da emancipação dos trabalhadores no início do séc. xx transformou-se numa agitação permanente. Ninguém está parado, mas “a pura agitação não gera nada de novo. Reproduz e acelera o já existente” (Byung-Chul Han).  Isto explica o consumo bulímico dos consumidores da produção cultural deste animal laborans hiperactivo e hiperneurótico (Byung-Chul Han).

Mas tem de ser necessariamente assim? Há algum modo alternativo que combine a condição de receptor artístico com a de ser humano vivendo na era da globalização e dentro de um sistema capitalista sem alternativa à vista?

No que aqui nos diz respeito, ao universo artístico, talvez seja possível que, da responsabilidade de quem oferece – do programador, do director do teatro ou do Festival – reduzir a quantidade da apresentação das obras e, em segundo lugar, criar plataformas diferenciadas para as obras a apresentar (mais experimentais, mais expressamente minoritárias, mais lentas ou mais velozes). Colocar-se-á aqui o problema do acesso democrático a todos os que querem criar, mas é exactamente aqui que convém considerar – do ponto de vista do programador e da sua escolha – uma hierarquia de pertinência numa dada época e num dado lugar. Para o receptor a democracia existe na medida em que este possa escolher, da multiplicidade de ofertas, a que mais lhe interessa.

Assim, ao reduzir esta ansiedade de tudo programar, de programações permanentes, hiperactivas, hiperpublicitárias, talvez seja possível desviar a atenção do receptor para o acto de recepção e não só do consumo. Onde há espectáculos a mais, onde há exposições a mais, onde há festivais em demasia é preciso repensar as políticas culturais. Este não é o modelo a importar das grandes metrópoles, não é um modelo de desenvolvimento. Se admitirmos que, a par do consumo permanente, há também e cada vez mais uma valorização do trabalho cognitivo, admitiremos pois a necessidade das programações minoritárias e exultemos com elas e com os tempos de silêncio ou de inactividade que podem existir entre dois espectáculos, entre duas exposições e experimentemos encontrar outros destinatários capazes de construírem o bem comum (António Negri). O bem comum não é uma utopia, um projecto político de construção de uma sociedade a partir do zero. É uma hipótese de trabalho que está para lá das organizações dos partidos tradicionais, dos sindicatos tradicionais, dos públicos tradicionais, das formas esclerosadas da democracia. O Comum (ainda Negri) revela-se na cooperação social, que requer cada vez mais trabalho intelectual onde a vida activa e a vida contemplativa possam existir. O bem comum traduz-se na necessidade de que as pessoas participem e no caso concreto da recepção artística traduz-se em manter uma tensão sobre o conhecimento – de que as artes são modos específicos – entre quem programa e quem está disponível para receber: umas vezes a favor, outras vezes contra. Sendo assim, talvez seja possível, em parte, desocupar o consumo de todo o espaço público e criar uma cena artística não é um shopping center de espectáculos ou de exposições. Numa cena artística as pessoas estão no centro, a qualidade da vida e as tensões entre a vida e a arte são a razão de ser da sua existência.

*comunicação apresentada no Colóquio de Arte em Rede no Teatro Azul em Almada no dia 12 de Fevereiro de 2015

Present Tense - visitas guiadas

Published11 Jul 2013

Tags Present Tense antónio pinto ribeiro Descobrir

© Tatiana Macedo

No próximo sábado, dia 13, às 13h00, há visita guiada à exposição Present Tense feita pelo curador. Veja o calendário e pode marcar a visita no programa Descobrir

"Pode-se afirmar que esta exposição está, em muitas das suas fotografias, bastante próxima da irrupção da catástrofe, quando surgem os confrontos violentos entre a polícia e as populações, entre os trabalhadores mineiros e os imigrantes, nas fronteiras com escaramuças; «e, neste estado próximo da catástrofe, qual é o papel da fotografia?», assim pergunta Arielle Azoulay. A resposta é que, a fotografia é um (set) lugar particular das relações dos indivíduos com as pessoas que os governam constringindo-lhes o poder e, ao mesmo tempo, uma forma de relações entre indivíduos iguais. E qual o lugar privilegiado desta tensão? O espaço público. É no espaço público que se manifesta a usurpação do poder pelos regimes, é no espaço público que se ocupa, quando se quer reclamar e reivindicar os direitos de cidadania e de liberdade, é no espaço público que se fotografa e denuncia a violência e as catástrofes históricas. "

António Pinto Ribeiro

"Nous continuons à cultiver la mélancolie"

©Tatiana Macedo

A entrevista de António Pinto Ribeiro, curador do Próximo Futuro ao jornal Le Monde, na semana em que Portugal ocupou Paris com a sua mais recente criação artística.

Antonio Pinto Ribeiro est le commissaire général de "Proximo Futuro", vaste programme artistique lancé en 2009 par la Fondation Calouste Gulbenkian, et que l'on peut traduire par "le prochain futur", ou "le futur proche".

Essayiste, cofondateur en 1992 de Culturgest, principal centre culturel de Lisbonne financé par la banque Caixa Geral de depositos, il réfléchit à une esthétique portugaise dans la sérénité de cette fondation atypique, musée d'art contemporain cerné de jardins, centre d'art, fondé au début des années 1950 par un magnat du pétrole et devenu un rouage essentiel de la culture portugaise avec 90 millions d'euros de budget annuel en 2013.

On a souvent comparé la Fondation Gulbenkian à un ministère de la culture "bis"...

La Fondation a été un des principaux soutiens à la culture pendant le salazarisme, puis pendant les premières années de la démocratie, jusqu'aux années 1980. A cette époque, l'Etat portugais s'est mis à investir dans le cinéma, le théâtre, les arts contemporains.

Mais avec la crise actuelle et l'absence totale de vision culturelle du gouvernement [dirigé depuis 2011 par Pedro Passos Coelho (PPD/PSD), centre droit], les artistes se tournent à nouveau vers la Fondation Gulbenkian. Je n'ai pas le souvenir d'autant d'indigence politique depuis la dictature.

C'est une lente négligence. Par exemple, le Centre culturel de Belém (CCB), inauguré en 1992, a très bien fonctionné jusqu'en 2007. Mais aujourd'hui les salles de concert sont vides, le Musée d'art moderne Berardo, abrité par le CCB, est semi-privé. Il a beaucoup contribué à la valorisation de la collection de son propriétaire.

Comment le Portugal se situe-t-il aujourd'hui, culturellement ?

Le Portugal est un pays étrange, inégal, contradictoire. Nous avons une élite très instruite, très créative, des cinéastes, des architectes, des intellectuels d'une grande qualité. Mais la classe moyenne n'est pas au fait de la création. On lui a proposé un modèle de nouveau riche.

Nous avons vécu cinquante ans de salazarisme en étant à côté du monde. Nous n'avions accès à rien de contemporain, nous avons raté toutes les révolutions esthétiques. Puis l'Europe a apporté quantité d'argent, qui a servi à construire des bâtiments, des infrastructures, pas une nouvelle identité.

Comment définiriez-vous l'identité artistique portugaise ?

Par élimination. Ni espagnole, ni française, ni, ni... Je dirais que nous continuons à cultiver la mélancolie, la nostalgie, et que nous sommes imprégnés d'un certain expressionnisme du Sud. Bizarrement, la création portugaise a délaissé le baroque, elle est très incarnée, claire, nettoyée. Et bien sûr tournée vers l'Afrique et le Brésil, principalement pour les arts plastiques.

Et par rapport à l'Europe ?

Les Chantiers d'Europe, qui mettent cette année le Portugal à l'honneur, auraient pu être l'occasion d'un débat en profondeur, dont nous ne pouvons pas faire l'économie. La diffusion artistique est orientée vers l'Europe. Tous les créateurs se tournent vers elle, Paris étant une porte essentielle. Mais ils découvrent que ce n'est pas si simple, que cela ne fonctionne pas naturellement. D'où cette sensation d'être toujours à la périphérie. C'est un signe, auquel il convient de réfléchir.

La culture africaine est très présente à Lisbonne...

Bien sûr, et les temps changent. Il y avait avant la crise quarante mille Angolais vivant officiellement au Portugal ; aujourd'hui, près de cent mille Portugais sont partis vivre en Angola, à cause de l'effondrement économique ici et de la croissance là-bas. Cette inversion est fascinante.

"Debating African design and fashion at the Calouste Gulbenkian Foundation"

(foto de Sandra Rocha/KameraPhoto)

Nowadays, the design and fashion concepts are, directly linked to what happens in the capitalist countries. But, how can it be, to the African creators, who do not have the same resources as their American or European counterparts? It was on this issue (and not only!) that the debate of the African and Latin America Observatory addressed, entitled "The place of design and fashion in North Africa", held in May, at the Calouste Gulbenkian Foundation, in Lisbon, Portugal.

Little by little, fashion begins to grow in Africa. At least it is one of the conclusions that it is drawn from the conference "The place of design and fashion in North Africa", organized by the Africa and Latin America Observatory, which took place at the Calouste Gulbenkian Foundation, in Lisbon, Portugal, last May.
Among the experts that were present was Mirian Tavares, from the Research Center for Arts and Communication in Faro, (Centro de Investigação em Artes e Comunicação de Faro), and Sandra Muendane, from the African Center for Development and Strategic Studies (Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento). The first investigator held and presented an analysis to the photographic work of the Moroccan Majida Khattari, namely to the vision that she has about the role of the veil in the Muslim world and how she "uses photography, facilities and fashion shows as a provocation/ reflection" about it. Meaning, Khattari is inspired on the lives of Muslim women to design her work and thus "establish a dialogue between different cultures within her own culture".  An art that includes a goal, according to Mirian Tavares: "to cause unrest and the desire to know more". Already in her speech at the conference, Sandra Muendane held a picture of the functionality of small workshops of African fashion. She has an architecture degree in fashion design from the Technical University of Lisbon (Universidade Técnica de Lisboa), and drew on her experience in parades, exhibitions, workshops and artist residencies in Africa and explained how the creators of this continent work. "The inspiration is the cultural, economic and political social environment in which one lives, because it has a direct effect on our actions", explained the also Mozambican designer, adding that the purpose for these designers is to create "a line of functional and commercial clothing (to sell) and/ or conceptual (to be commented)

Sandra Muendane also mentioned the fact that because there are hardly any institutes specialized in fashion teaching in the African territory, that means that many creators are self-taught or have only a technical training course in sewing. And to illustrate the work done in an atelier, the researcher portrayed a day in a ready-to-wear in South Africa. First the collections are drawn up, "which implies looking for trends and sketch making". Then the "existing materials, which are organized by country, color and gender” are adapted to make the molds, which "are then cut and sewn in the same atelier".

Pieces that attract the upper class
The African designer’s creations are disclosed in fashions shows - there are several events, such as the Angola Fashion Business - salons, specialized magazines and even websites. And it is from there that they capture their main customers that, according to Sandra Muendane, belong to the "upper class, between 25 and 60 years old, or foreigners who want to know the African fashion". Sales are mostly made in the designers' own stores, where the prices are around "between 190 and 380 dollars" in the ready-to-ware. And one of the conclusions presented by Sandra Muendane is that fashion, despite being a business like any other, "also serves as an intervention vehicle, because their actors use their natural talent to communicate through design”.

Egypt and Tunisia revolutions on the agenda
Fashion and design were not the only debated topics at Gulbenkian. The consequences of the revolutions in Egypt and Tunisia, both occurred in 2011, were also on the agenda of the conference of the Africa and Latin America Observatory. First, with the interventions from Susanne Kümper (German fashion designer) and Omar Nagati (Egyptian architect and urban planner), which have focused on Cairo contemporary fashion and in the ways that artistic and cultural expression are also displayed in the streets of Egypt’s capital, respectively. The aim was to show how these were influenced by the popular uprising of 2011, which put an end to the regime of Hosni Mubarak. And then, Nuno Coelho, communication designer and professor at the University of Coimbra, gave his semiotic perspective on the effects of the Arab spring in Tunisia, which took from the power President Ben Ali and open way to the first free elections in that country.

Marta Fonseca


"Um homem aluga a sua balança num passeio de Tunes"

(Fotografia de Miguel Manso, em Tunes)

Na Tunísia, no primeiro aniversário da Revolução do Jasmim, o programador e ensaísta António Pinto Ribeiro, procurou os sinais de mudança e encontrou todas as contradições e radicalismos dos períodos pós-revolucionários. Lembrou o 25 de Abril português: "São impressionantes as semelhanças." Mas responderam-lhe: "Na vossa revolução, vocês não tinham um deus tirano a intervir em favor de uma das partes."  
Dezenas de homens vestidos de escuro estão sentados nas esplanadas e nos cafés e fumam muito. Outros, de pé, ocupam os passeios da rua em grupos, alguns de mãos dadas. São novos, velhos, a maioria tem um ar triste. Calcula-se que o desemprego ronde actualmente os 20% ou 30%, sendo que haverá regiões da Tunísia, em particular na costa e no Sul, em que pode atingir os 40%. São raras as mulheres sentadas nos cafés da Avenida Habib Bourguiba. Acontece às vezes entrar uma, directa ao balcão, tomar um café de pé e voltar a sair sem desviar o olhar da direcção por onde caminha. Muitas usam o véu e algumas o niqab, o véu que tapa completamente o rosto. Onde está a revolução?  
É Inverno, o frio obriga a usar agasalhos pesados, um vento sopra dia e noite e dói. Um ano depois da Revolução do Jasmim, que começou a 14 de Janeiro de 2011, em Túnis, capital da Tunísia, dias depois de o jovem Mohamed Bouazizi, vendedor ambulante de frutas e legumes, se ter imolado pelo fogo. Nesse dia, começou o fim da ditadura de vinte e cinco anos de Ben Ali. Hoje, muitas ruas continuam encerradas ao trânsito, praças e secções de avenidas estão cercadas por grandes rolos de arame farpado produzido exclusivamente por fábricas militares. Alguns tanques ocupam as praças, mas parecem ao abandono, tendo apenas um ou dois soldados muito jovens a guardá-los. Onde está a revolução?  
A medina tem actividade comercial reduzida e são poucos os turistas que por ela passeiam. Na Avenida de França, os homens a vender casacos forrados de lã não param quietos no passeio para não gelarem. O casaco numa das mãos, a outra metida no bolso das calças. Alguns, muito poucos, atrevem-se a vender dois, um em cada mão.  
Quando os palácios oficiais e particulares da família de Ben Ali foram tomados, os revoltosos encontraram milhões de dinares e ouro. Os taxistas fizeram as contas e dividiram pelos 10 milhões de tunisinos. Agora cada um reclama a sua parte e não entende por que o dinheiro não foi todo entregue ao povo. Onde está a revolução?  
A Faculdade de Letras e das Artes de Manouba esteve encerrada em Dezembro e parte de Janeiro porque duas estudantes queriam assistir às aulas com o rosto tapado com o niqab, o que é contrário a todos os regulamentos universitários. Depois de verem recusada a entrada nas salas de aula – podem frequentar muitos dos espaços universitários, inclusivamente a biblioteca -, boicotaram as aulas com a ajuda de militantes salafistas e agrediram professores. É a pressão dos fundamentalistas do Ennahda, o partido que ganhou as eleições para a assembleia constituinte e formou um Governo que deveria ter carácter provisório e ser semipresidencialista.  
Contudo, o primeiro-ministro Hamadi Jebali controla todos os poderes e o Presidente Moncef Marzouki, que vem da luta pelos direitos humanos, insuspeito de ser antidemocrata, não representa mais do que um papel decorativo. Por outro lado, e apesar de não ocupar qualquer cargo governativo, Rashid al-Ghannushi, o dirigente do partido Ennahda, é quem controla o poder, ambicionando tornar-se o guia espiritual da Tunísia, numa espécie de versão árabe dos ayatollahs, e é na verdade o primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros oficioso.  
De qualquer forma, no meio dos quarenta ministros que compõem o Governo, que é um Governo de alianças, são grandes as contradições, com o ministro da Cultura, o sociólogo Ezzeddine Bach Chaouech, a reclamar que o direito à liberdade de criação e de expressão seja inscrito na Constituição. Ao mesmo tempo, deputados da maioria reclamam que se inscreva na mesma Constituição a obrigatoriedade de os cursos nas universidades serem interrompidos durante as cinco orações diárias dos muçulmanos. Não necessariamente inscrito na Constituição, mas como regulamentos escolares, está a pretensão de interditar as turmas mistas, proibir a leitura e o estudo de Madame Bovary, de Flaubert, acusada de ser prostituta e Nietzsche de ser ateu. Onde está a revolução?  
Cravos por jasmim  
São aos milhares as armas que circulam entre os cidadãos, a maioria roubada durante os primeiros dias da revolução. Há pequenas manifestações todos os dias, seja para contestar decisões tomadas pelo Governo, seja de grupos na reivindicação dos seus interesses, seja de natureza explicitamente política, como aquelas dos jornalistas contestando a nomeação de dirigentes islamistas para os órgãos do Estado, seja dos intelectuais e dos artistas ocupando em permanência uma praça frente à sede do Governo.  
Muitos dos muros da cidade que foram grafitados depois de 14 de Janeiro já desapareceram, tapados por cartazes publicitários ou tapumes que preparam a construção de novos bancos ou condomínios.  
Contudo, alguns tunisinos com sentido da História e da memória fotografaram e filmaram a maioria desses murais e grafittis.  
Onde está a revolução é a pergunta que faz o visitante apressado ou o tunisino já decepcionado com a falta de emprego, a falta de estabilidade social e económica, a queda assustadora do turismo, uma das mais importantes fontes de receita, as tensões sociais e a deriva política aparentemente inesperada que foi o voto maciço no partido Ennahda.  
E, no entanto, a revolução existe. A liberdade de imprensa é um facto que se traduz nos editoriais, no jornalismo de investigação, na cobertura sem restrição dos acontecimentos sociais e nas páginas do internacional.  
Se durante a ditadura eram muitos os tunisinos que acediam clandestinamente aos canais de televisão, na actualidade, isso é um facto na grande maioria das casas da classe média, que podem aceder a mais de 3.000 canais oriundos só do golfo e dos países do Médio Oriente, a que há a somar os canais franceses, espanhóis, a BBC e a CNN.  
E a abertura de editoras, a publicação de livros de autores tunisinos, as traduções, as novas livrarias. A Millefeuilles, a mais famosa livraria de Tunes, que existia muitos anos antes do 14 de Janeiro e deve o seu nome a ter sido antes uma pastelaria, teve de acrescentar prateleiras para poder expor todos os livros que agora já pode vender em liberdade.  
A revolução ainda está na rua, uma frase a fazer ecoar a revolução do 25 de Abril de 1974, que é uma evocação permanente de cada vez que se fala do modo como o 14 de Janeiro aconteceu e de cada vez que se pergunta sobre o futuro deste país.  
Na verdade, são impressionantes as semelhanças, uma espécie de filme, de um clássico que corre diante dos olhos nas ruas e nas reuniões em Túnis com tunisinos. A liberdade do debate tantas vezes excessivo na forma, a crítica intempestiva e a ironia são traços desta similitude.  
Num teatro, o público de uma comédia de costumes sociais, uma espéci e de teatro de revista, aplaude entusiasticamente de cada vez que uma personagem salafista ou membro do Governo é caricaturada ou criticada, o Facebook e o Twitter continuam dinâmicos – são muitos aqueles que, talvez por precaução, continuam sob nomes falsos a colocar posts ou a twitar.  
As revoluções fazem aparecer o que de melhor e de mais horrível está latente numa sociedade. A Revolução do Jasmim não escapa a esta constante. Daí não poder ser surpresa que, a par com a generosidade e a intervenção cívica, tenham emergido também os fanatismos religiosos e as vontades totalitárias. A este propósito ainda perguntei se alguma companhia de teatro teria montado recentemente O Parque, de Botto Strauss, ou Hamlet Machine, de Heiner Muller.  
Parece que não. Isto porque o teatro foi das poucas artes toleradas pelo regime de Butos Ali, que, sabendo do impacto reduzido que teria sobre a maioria da população, com taxas de analfabetismo elevadas e alheia na sua quase totalidade ao teatro, lhe permitia vender uma imagem de Governo tolerante.  
Mas o mais interessante neste contexto, é que, depois da euforia revolucionária, da vontade de mudar a cidade, o país e o mundo no dia seguinte, da sensação de que tudo é possível, vem depois o cansaço, a ressaca, o desencanto.  
Tudo isto estava presente no colóquio organizado pelo festival Rencontres Théâtrales de Cartago, um festival internacional que conta maioritariamente com a presença de companhias do Médio Oriente, do Magreb, algumas da África Subsariana e poucas companhias europeias apresentadas pelos seus institutos de origem, seja o Goethe, o Instituto Francês e outros.  
O tema do colóquio era o Teatro e a Revolução, discutido por actores, encenadores, jornalistas e programadores, na maioria da região mediterrânica. As discussões eram acaloradas, muito especialmente sempre que intervinham os tunisinos, os iraquianos, os sírios.  
Tratava-se da urgência de encontrar um teatro revolucionário ou de fazer o teatro seguir a revolução. A disciplina era difícil de manter por qualquer moderador, os pontos de ordem à mesa sucediam-se, houve tentativa de boicote de uma reunião, por muitos considerada anti-revolucionária. Na verdade, assistia-se à aprendizagem trôpega da democracia em funcionamento, de muito ressentimento e de vontade genuína de alterar o estado da situação cultural. Mas deve-se acrescentar que também se tratava de assistir ao conflito entre o velho – o velho teatro, os velhos responsáveis pelas instituições culturais da Tunísia, os velhos argumentos do teatro da identidade tunisina (quando, na verdade, o teatro começa na Tunísia, como em todo o Médio Oriente, só no século XIX...) – e o novo, pouco representado ou pouco expressivo, porque ou não estariam presentes os seus actores ou porque não saberiam como se fazer ouvir num ambiente tão conflituoso.  
Mais uma vez, alguém pergunta como foi o teatro e a revolução de Abril e é importante dizer que houve também um momento de excesso de expectativas nos dias seguintes, quando se pensava que muitas obras-primas sairiam das gavetas onde tinham sido fechadas pela censura e, na verdade, tal não aconteceu ou aconteceu pouco simplesmente porque, sob um regime de ditadura, é muito difícil criar. E que, por este motivo, surgiu a decepção, mas que foi possível, depois, construir um teatro em democracia com muitos textos importantes, com encenadores e actores notáveis, que foi possível construir um teatro contemporâneo em liberdade. Mas que tal demorou tempo, alguma disciplina e recursos financeiros e aprendizagem da profissão e da democracia.  
E quando perguntaram que ameaças existiam entretanto, tentei chamar a atenção para formas demagógicas da cultura artística que podem surgir: a obsessão por uma arte da identidade que pode acabar num nacionalismo patético e isolacionista, o kitsch como forma de expressão artística e política populista e a vitimização do artista, que é uma forma de chantagem inadmissível sobre a sociedade. E que o que acontecia neste momento na Tunísia como no Egipto era que aquilo que se designa como o cultural ainda estava acontecer na rua e era prioritário vivê-lo.  
Viver em liberdade  
A laicidade do Estado e a instauração da democracia são as questões de fundo e as razões das tensões e dos conflitos que hoje emergem na sociedade tunisina. O editor Karim Ben Smail é um tunisino com uma formação feita em França e nos Estados Unidos mas há muito residente em Túnis, e orgulha-se de ter publicado e distribuído na clandestinidade obras relevantes para os seus leitores durante a ditadura. Agora edita sobretudo ensaios porque é a "experiência de viver em liberdade", ensaios em especial de psicanalistas e de jornalistas, os romances novos e a nova ficção vão precisar de mais tempo. Como em Portugal, digo eu. É um dos intelectuais que se puseram a estudar a revolução dos cravos quando o 14 de Janeiro aconteceu. Também ele repete que são muitas as semelhanças entre as duas revoluções, mas que há um "detalhe" substantivo: "Na vossa revolução, vocês não tinham um deus tirano a intervir em favor de uma das partes", diz, glosando assim aquilo que é a manipulação pelos islamitas integrados no partido Ennahda, a quem responsabiliza pelo abuso dogmático na interpretação do Corão e nas tentativas de controlo total e regimentado da sociedade tunisina. Ainda lhe digo que, à época, houve alguns membros da Igreja Católica que tiveram em Portugal um comportamento abusivo, mas há que reconhecer a diferença, que é fulcral e que começa necessariamente na tentativa de impor uma ditadura do quotidiano dos tunisinos. Em seguida, diz-me também da sorte que tivemos de, à época, termos parte de uma Europa democrática a ajudar Portugal financeiramente mas, principalmente, a integrar as regras da democracia. O que eles têm mais presentes são regimes ditatoriais do golfo ligados aos salafistas a apoiarem as facções mais retrógradas do mundo muçulmano.  
Para eles, os tunisinos, a Europa está tão perto quanto distante. Na verdade, Túnis está a 30 minutos de avião de Palermo, a 40 minutos de Malta, a 1h20 de Genebra, a 2h30 de Paris, a 3h de Lisboa e, contudo, a Europa a que pertencem estas cidades está muito distante na solidariedade concreta e é suspeita de, para conservar os seus interesses comerciais, ser incapaz de solidariedades políticas para os protagonistas e herdeiros da Revolução do Jasmim.  
Na Avenida de França, defronte à loja dos Artigos de Desporto do Magreb, um homem sentado no chão aluga a sua balança aos transeuntes por um preço equivalente a 30 cêntimos. No mesmo passeio, poucos metros à frente, vendem-se postais ilustrados da Tunísia. A maioria são postais de Túnis no Verão com fotos coloridas por buganvílias vermelhas a treparem eufóricas pelos muros e pelas casas brancas da cidade.  

António Pinto Ribeiro

(cf. artigo no Público, 19.01.2012)

"O Nilo, esse, mantém-se tranquilo"

© Amr Abdallah Dalsh / REUTERS

Onze meses depois do início da Primavera Árabe, o programador e ensaísta António Pinto Ribeiro fez check in num hotel ao lado da Praça Tahrir. Nos dias seguintes, os combates recomeçaram. "Parei de escrever a minha novela; a realidade é mais veloz do que a minha ficção", disse-lhe a escritora Magdy El Shafee.

Estou no Cairo em Dezembro de 2011, onze meses depois da revolução do Nilo, iniciada a 25 de Janeiro, uma das datas dessa revolução regional que os media designaram como Primavera Árabe. Não sabendo muito bem onde ficar, hospedei-me naturalmente num hotel perto da Praça Tahrir por onde, aliás, o táxi que me conduzia do aeroporto fez questão de passar, indicando-ma como lugar de peregrinação; e claro que a minha primeira saída para a cidade foi exactamente para ver a Praça Tahrir.  

Exalava um cheiro nauseabundo resultante do facto de, nas redondezas, haver uma única casa de banho, numa mesquita vizinha e naturalmente insuficiente para responder às necessidades dos milhares de pessoas que por ali passavam ou lá estiveram acampadas. Já não eram muitas as tendas, a maioria num estado miserável, e a população que por lá andava era constituída por mendigos e algumas centenas de jovens, muitos deles tentando vender aos poucos turistas os novos gadjets da revolução.  

Foi uma decepção este primeiro confronto com a praça-símbolo que há meses vem alimentando a ideia de uma libertação possível para os egípcios, para os árabes, para os europeus e também para mim que, como milhões de pessoas no mundo inteiro, viram naquela praça e no que nela se passou a possibilidade de um novo mundo. Claro que os cínicos dirão com a sobranceria do seu egoísmo e da sua ignorância que o fracasso era previsível. Não só não era previsível - como a própria revolução não o era à altura - como, pior do que isso: que tinham feito os cínicos, e em particular os europeus, para que tal não acontecesse? Como sempre, nada!  

Nos dias seguintes à minha chegada os combates de rua recomeçaram inesperadamente com enorme violência, fazendo mais feridos, mais mortos e prisões, e obrigando os hotéis das redondezas a encerrarem por falta de turistas e a entaiparem as janelas e as portas sumptuosas para evitarem a destruição ou a invasão. Forçado a mudar de hotel, no momento em que saía, o recepcionista chorava porque esse seria o seu último dia de trabalho. Com um salário baixo e uma família para sustentar, num país onde não existem as protecções do estado social (não há subsídio de desemprego), ele iria juntar-se aos milhões de outros egípcios no desemprego: 30, 40, 50 por cento?  

Ninguém é capaz de dizer o número exacto. Esta incapacidade, mais do que indiciar a ausência de uma informação estatística, é o reflexo da total desconsideração e alheamento a que o governo anterior tinha votado a população. Não lhe interessava minimamente saber o estado em que ela se encontrava e ignorava completamente as suas condições de vida e as suas dificuldades de subsistência.  

Com a intenção de ser solidário simultaneamente com os protestantes da Praça Tahrir e com o recepcionista, disse-lhe que em Portugal tínhamos passado por um processo semelhante, e que a situação iria acalmar e ele ia conseguir ter uma vida mais normal, queira isto dizer o que se quiser, mas não fui nada convincente. O recepcionista continuou a chorar enquanto tratava de fazer o checkout aos poucos hóspedes que ainda restavam. Depois, tivemos que descer para a cave, atravessar as dispensas e a cozinha, saindo por uma porta exígua para a rua, onde um motorista amigo esperava para nos levar a um hotel noutro bairro, mais seguro, já do outro lado do Nilo.  

Duas janelas  

Nesse hotel para onde me mudei a sensação de desolação mantinha-se. Embora aos funcionários sejam actualmente dadas instruções para dizer que todos os hotéis do Cairo estão com taxas de ocupação de mais de 60%, na realidade, esse valor é falso e é muito inferior. Nas ruas, e exceptuando os jornalistas presentes na Praça Tahrir, ou nas ruas que lhe dão acesso, e alguns funcionários das embaixadas do vizinho bairro de Zamalek, não se encontram mais estrangeiros.  

Os restaurantes internacionais estão praticamente vazios e os taxistas oferecem preços de saldo para quem quiser visitar as pirâmides. A televisão estatal transmite em duas janelas: a da esquerda está sempre a transmitir a imagem da Praça Tahrir, enquanto a da direita vai alternando entre telenovelas, notícias de desporto, talk shows, etc.  

A poluição é assustadora: uma neblina de gases está permanentemente suspensa sobre a cidade, tornando o ar irrespirável e a luz do sol rarefeita. O corpo dói com a sensação de estar intoxicado e não há garrafas de água suficientes para tentar lavar a garganta. O tráfico caótico, o zhama, e o buzinar, o hiza, constante tornam-se a cada hora que passa mais insuportáveis, e a deslocação para a baixa da cidade é mais difícil do que nunca, porque quando a ponte principal que faz a ligação entre as duas margens do Nilo está desimpedida, são aos milhares os carros que param para os mirones olharem a Praça Tahrir.  

Numa cidade onde não há qualquer regra de trânsito que não possa ser infringida com a maior naturalidade, a confusão é total. A piorar a situação, muitas ruas foram cortadas ou tornaram-se intransitáveis por causa das barreiras de blocos de cimento construídas pelo exército para melhor controlar os manifestantes.  

Para se ir do bairro de Zamalek à Townhouse Gallery, do outro lado do rio, demora-se duas horas a mais do que era costume. A Townhouse Gallery é, desde a sua fundação, em 1998, um dos mais criativos e alternativos centros culturais do Egipto, e o seu director e os artistas que ali trabalham ou residem estão preocupados. Anónimos começaram a fotografar e a filmar toda a gente que sai e entra do edifício e a inauguração de uma exposição foi cancelada porque a rua foi interdita ao trânsito. Todos se sentem ameaçados, tanto mais que a Townhouse Gallery é conhecida como lugar de acolhimento de ex-presos políticos, mulheres violadas e artistas militantes.  

Aqui se faz teatro, dança e exposições e nenhum texto é censurado, porque até agora a comunidade internacional, e sobretudo as organizações holandesas e alemãs, tem exercido forte pressão para proteger este espaço de liberdade de criação.  

O mesmo receio tem o director do Temple Independent Company, outro centro de produção de artes performativas do Cairo que tem adiado sistematicamente as estreias das suas produções. "Eles", diz-me, "já começaram a tapar as estátuas e as mulheres sem véu são insultadas nas ruas". Com o receio de que o álcool seja interdito, "muitos começaram a comprá-lo em glandes quantidades, tendo em vista consumi-lo em tempo de ilegalidade, ou vendê-lo como futura fonte de rendimento, no mercado negro".  

"Eles" são os salafistas ou "os barbudos", como lhes chamam. "Uns fascistas", dizem alguns, e diferenciam-nos, apesar de tudo, dos Irmãos Muçulmanos, tentando explicar-me que estes últimos são como os democratascristãos na Europa. De qualquer modo, não há fundamentalistas moderados, como bem o escreveu recentemente o escritor e poeta marroquino Tahar Ben Jelloun (n. 1944) - ser fundamentalista religioso é incompatível com ser racionalista moderado.  

A comunidade artística egípcia está dividida. Muitos foram os que adiaram estreias de espectáculos, concertos e tournées na Europa, ou cancelaram os projectos, uns porque as obras que estavam a criar foram ultrapassadas pelos acontecimentos - "Parei de escrever a minha novela; a realidade é mais veloz do que a minha ficção", diz a escritora Magdy El Shafee (n. 1961) - outros porque a verdadeira arte hoje está na rua.  

No Youtube existem dezenas de curtos documentários, canções, fotos, que mostram ao mundo o que está a acontecer todos os dias. O Youtube é, aliás, o glande écran multiplex dos altistas egípcios comprometidos com a revolução. Outros artistas, pelo contrário, sentem-se traídos pela revolução e pelo exército e só desejam partir. Decepcionam-se com amigas que, ou condicionadas por familiares ou por iniciativa própria, começaram a tapar o rosto com a niqab. Acusam a Europa de nada entender do que se está a passar e os seus cronistas e opinion makers de serem levianos nas análises da situação. Muitos têm amigos no Peru e em Santiago do Chile e é para lá que querem partir.  

Eu estou aqui, no Cairo, para preparar a edição do Programa Próximo Futuro (da Fundação Calouste Gulbenkian) do ano que vem, e todos eles me dizem que é a Europa que não tem futuro porque se fechou como uma fortaleza sem alma.  

Ressentimento  

A violência continua, e agora é claro que os inimigos da praça já não são só os salafitas ou os nostálgicos de Mubarak, mas o próprio exército, que deixou de ser um exército amigo para se transformar num poder contestado e a quem todos reclamam que abandone o poder. Não será nem fácil, nem rápido, porque o exército controla toda a máquina administrativa do país e as suas cúpulas detêm parte do poder financeiro, sendo responsáveis por muita da corrupção que grassa.  

Mas a violência exercida sobre os manifestantes e, particularmente, o episódio da mulher espancada na praça, a quem parcialmente desnudaram - um dos maiores ultrajes que se pode infligir a uma mulher neste e noutros países muçulmanos -, tornaram impossível a reconciliação dos manifestantes com os militares.  

Os manifestantes da Praça Tahir, que depois dos primeiros resultados das eleições começavam a perder o apoio da população, foram agora assimilados pelas manifestações de milhares de mulheres que, condenando cenas de violência como a que sofreu Farida Elhessy (que se sabe agora que era médica e que estava na praça para tratar os feridos) reclamam o fim do conselho dos militares.  

Estes protestantes do Cairo não são nem uma força homogénea, nem pertencem à juventude de qualquer partido político. Há os que são manifestantes autênticos, mas há também, confundidos nestas manifestações, pequenos ladrões, carteiristas e até skinheads árabes. Aliás, dever-se-á a estes últimos as cenas de provocação com cocktails molotov que acabaram por causar o incêndio do Instituto Egípcio.  

Fundado em 1798, durante a invasão do exército de Napoleão Bonaparte e considerada a instituição científica mais antiga do país, a sua biblioteca guardava manuscritos, mapas e cerca de 200 mil livros antigos, que arderam quase na totalidade. Os que não arderam, foram transportados em camiões, e o destino de muitos deles é uma incógnita. Há quem diga que alguns, salvos, já estão a caminho de antiquários e leiloeiros europeus.  

Uma das obras que ardeu quase na totalidade foi um dos raros manuscritos da Descrição do Egipto, elaborada durante a campanha napoleónica (1798-1801), o que, na versão de um jovem sociólogo que participou no trabalho de recolha dos salvados, vai permitir que as editoras francesas comecem desde já a preparar edições em formato de bolso ou de luxo/chic. Este ressentimento face a muitos estados europeus é recorrente, em particular no seio do sector cultural e artístico, que se viu ao longo dos últimos trinta anos abandonado pela grande maioria das organizações europeias, apesar de no país e na capital serem vários os institutos culturais agregados aos ministérios dos negócios estrangeiros.  

E, no entanto, no Cairo existe há muitos anos uma comunidade artística e cultural inventiva, trabalhando com recursos mínimos: há excelentes fotógrafos, a literatura egípcia, em árabe, inglês ou até francês, é extraordinária, jovens escritores emergem combinando a BD com narrativas curtas, os bloggs são inventivos e revelam atenção às questões internacionais pertinentes, bandas tocam noites e noites em antigos palácios onde fumar é possível e, apesar de o ambiente ser muitas vezes próximo do irrespirável, as festas acabam com o sol a irromper velozmente, como é próprio do Norte de África.  

Muitos são os enfeites a desejarem um Bom Natal em inglês às entradas dos hotéis mas também em algumas ruas, o que não deixa de ser senão a confirmação da globalização de uma festa europeia numa cidade maioritariamente muçulmana e onde a minoria cristã copta só celebra o seu Natal em Janeiro.  

À noite continuo a leitura de Os pequenos mundos do edifício Yacoubian (de 2002 e editado em português, pela Presença, em 2008), de Alaa El Aswany, um dos mais lúcidos e fascinantes escritores egípcios da actualidade. Ler este livro a poucas centenas de metros da Praça Tahrir é confrontarmo-nos com uma narrativa que parece ter previsto toda a revolução egípcia, e através dela se entende melhor a complexidade deste país.  

Sobre a pequena mesa do quarto amontoam-se outros livros de outros autores egípcios que é urgente ler: Gamal El- Ghitani, Khaled El-Khamissi, Latifa, Al-Zayyat, Bahaa Taher Chedid. Uns antigos, outros actuais, nos seus textos estão escritas as inquietações sobre o Egipto e sobre os egípcios.  

O Nilo, esse, mantém-se tranquilo. À superfície, as suas águas são de uma tal calmaria que neste momento se torna até desesperante...  
 

[Artigo no jornal Público (no P2), 30 de Dezembro 2011]

PROCHAIN FUTUR: "Nollywood" à Paris

© Pieter Hugo, “Chris Nkulo and Patience Umeh. Enugu, Nigéria”, 2008

(da série "Nollywood"). Cortesia STEVENSON, Cidade do Cabo e Yossi Milo, Nova Iorque 

Hoje é dia das "Grandes LIÇÕES" em Paris (no Théâtre de la Ville), no final das quais, às 19h00, inaugurará a exposição "Nollywood", do reconhecido fotógrafo Pieter Hugo, recentemente galardoado com o mais importante prémio dos Encontros Fotográficos de Bamako ("Prix Seydou Keïta").

A exposição é organizada pelo Programa Gulbenkian Próximo Futuro/Prochain Futur em parceria com o Programa Gulbenkian de Ajuda ao Desenvolvimento e co-produção com o Théâtre de La Ville de Paris. Tem a curadoria de António Pinto Ribeiro e de Federica Angelucci, estando em exibição no Théâtre de la Ville de Paris até 30 de Dezembro de 2011.

Nollywood 

 Na série de fotografias intitulada “Nollywood”, Pieter Hugo confronta o papel do fotógrafo no domínio onde interagem a ficção e a realidade. “Nollywood” é considerada a terceira maior indústria cinematográfica do mundo, lançando perto de 1000 filmes por ano para o mercado de home vídeo. Tal abundância é possível devido ao facto de os filmes serem realizados em condições que assustariam a maioria dos realizadores independentes ocidentais. Os filmes são produzidos e comercializados em apenas uma semana: equipamentos de baixo custo, guiões muito básicos, actores escolhidos no próprio dia da filmagem, locais de filmagem da ’vida real’.

Em África, os filmes de “Nollywood” são um raro exemplo de auto-representação nos meios de comunicação social. A rica tradição de narração de histórias do continente, comunicada de forma abundante através da ficção oral e escrita, é transmitida, pela primeira vez, através dos meios de comunicação social. As histórias na tela reflectem e apelam às vivências do público: os protagonistas são actores locais; os enredos confrontam o espectador com situações familiares de romance, comédia, bruxaria, corrupção, prostituição. A narrativa é exageradamente dramática, sem finais felizes, trágica. A estética é ruidosa, violenta, excessiva; nada se diz, tudo se grita.

Nas suas viagens pela África Ocidental, Hugo tem-se intrigado por este estilo distinto de construção de um mundo ficcional onde se entrelaçam elementos do quotidiano e do irreal. Ao pedir a uma equipa de actores e assistentes para recriar mitos e símbolos de “Nollywood” tal como se estivessem em sets de filmagem, Hugo iniciou a criação de uma realidade verosímil. A sua visão da interpretação do mundo pela indústria cinematográfica resulta numa galeria de imagens alucinatórias e inquietantes.

A série de fotografias retrata situações claramente surreais mas que podiam ser reais num set de filmagens; para além disso, estas estão enraizadas no imaginário simbólico local. Os limites entre documentário e ficção tornam-se bastante fluidos e somos deixados a pensar se as nossas percepções do mundo real são de facto verdadeiras.

Federica Angelucci

Pieter Hugo nasceu em 1976 e cresceu na Cidade do Cabo, onde continua a residir. As suas participações em exposições colectivas actuais e futuras incluem “Urban Lives”,na Shoshana Wayne Gallery (Califórnia), “All Cannibals”, na Collectors Room (Berlim), “ARS 11”, no Kiasma Museum of Contemporary Art (Helsínquia), Mannheim Photo Festival (Alemanha) e “The Global Contemporary: Art worlds after 1989”, no ZKM Center for Art and Media (Karlsruhe). As suas mais recentes exposições individuais decorreram no Institute of Modern Art (Brisbane, 2010), na Yossi Milo Gallery (Nova Iorque, 2010), no Le Chateau d'Eau em Toulouse (França, 2010), no Australian Centre for Photography (Sydney, 2009) e no Foam Fotografiemuseum (Amesterdão, 2008). As suas participações em exposições colectivas incluem “The Endless Renaissance”, no Bass Museum of Art, em Miami Beach (Florida, 2009), “Street & Studio: An urban history of photography”, no Tate Modern (Londres, 2008), “An Atlas of Events”, na Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa, 2007) e a 27ª Bienal de São Paulo (Brasil, 2006). Foi galardoado com o primeiro prémio na categoria de Retratos no concurso da World Press Photo (2006) e ganhou o Prémio Standard Bank para o Melhor Jovem Artista Plástico (2007). Em 2008, foi galardoado com o Prémio KLM Paul Huf e com o Prémio Descoberta 2011, no Festival de Fotografia Rencontres d’Arles, em França. Em 2011 recebeu o grande "Prix Seydou Keïta" dos 'Encontros de Bamako', a mais importante bienal de fotografia africana.

Mais informações no site do Próximo Futuro e/ou através do email [email protected]

PROCHAIN FUTUR: Grandes Leçons et Pieter Hugo à Paris

© Pieter Hugo, “Emeka Onu. Enugu, Nigéria”, 2008 (da série "Nollywood").

Cortesia STEVENSON, Cidade do Cabo e Yossi Milo, Nova Iorque 

Amanhã, dia 18 de Novembro (6f), das 14h às 18h, repetem-se no Théâtre de la Ville de Paris as GRANDES LIÇÕES apresentadas ontem na sede da Fundação Calouste Gulbenkian pelo Programa Gulbenkian Próximo Futuro, fruto de uma co-produção que também envolve o Programa Gulbenkian de Ajuda ao Desenvolvimento, a Casa da América Latina (Lisboa), a CML, a Embaixada do Peru e a ACEP.

Às 19h, também no Théâtre de la Ville de Paris, inaugura a mais recente exposição do fotógrafo sul-africano Pieter Hugo (recém-galardoado com o grande prémio "Seydou Keïta" dos Encontros de Bamako), intitulada "Nollywood", com curadoria de António Pinto Ribeiro e Federica Angelucci.

Aproveitamos para disponibilizar todas as sinopses e biografias em francês:

GRANDES LEÇONS

GUSTAVO FRANCO

Indices du bonheur, actuel et futur, au Brésil: aspects conceptuels et déterminants économiques

Les problèmes d’ordre conceptuels inhérents aux indicateurs subjectifs du bonheur, qui ont récemment suscité une vaste production bibliographique dans le milieu académique, remontent aux origines-mêmes de la discipline. Ceci étant les progrès intervenus ces dernières années à la croisée entre économie et psychologie ainsi que le développement de ladite ‘économie expérimentale’ ont ouvert de nouvelles avenues visant l’élaboration et l’usage de ces indicateurs-là, qu’il s’agisse d’exploiter ou d’établir de nouveaux caps pour les politiques publiques. Dans le cadre de ce nouveau domaine de recherche se posent certaines questions primordiales, à savoir le rapport entre le niveau des revenus, ou plus généralement l’essor économique, et les indices du bonheur actuel et futur de divers pays. Plusieurs paradoxes existent à l’égard de ce rapport, l’un d’eux revient systématiquement dans bon nombre de recherches et concerne le résultat empirique selon lequel le progrès matériel a une influence aussi petite que restreinte lorsqu’il s’agit de définir le degré du bonheur. C’est sur cet axe qu’apparaissent les questions à propos du PIB et son taux de croissance comme étant l’objectif majeur des politiques publiques, probablement au détriment d’autres dimensions de la vie en société. Toutefois, les chiffres relatifs au Brésil suggèrent que nous fassions une lecture prudente de ces paradoxes; il serait peut-être prématuré d’abandonner les indicateurs strictement économiques de l'affluence. Bien qu’il s’agisse d’un pays émergent à revenu moyen, l’indice du bonheur actuel, mesuré de façon systématique par Gallup Poll, se situe dans le premier quart de la distribution globale et l’indice du bonheur futur du Brésil occupe le premier rang à l’échelle mondiale depuis cinq ans. Les résultats brésiliens, tout comme leurs déterminants, fournissent un excellent point de vue pour un débat plus ample sur le sens, la portée et les répercussions des indices du bonheur dans une optique de politiques publiques et des calculs qui en découlent.

Gustavo H. B. Franco est à la fois membre du Conseil d’administration de la Banque Daycoval (conseiller indépendant) et de celui de Globex Utilidades S/A. De nationalité brésilienne, il a terminé ses études universitaires, filière Economie, à la PUC – Pontifícia Universidade Católica de Rio de Janeiro en 1982, puis a enchaîné sur des 3ème cycles à l’université d’Harvard : M.A. (1985) et Ph.D (1986). Entre 1986 et 1993, il a non seulement enseigné mais encore fait de la recherche et du conseil spécialisé en questions économiques – inflation, stabilisation et économie internationale. Dans le service public, il a ensuite occupé plusieurs postes de 1993 à 1999 : au ministère des Finances en tant que secrétaire-adjoint chargé de Politique économique ; directeur aux Affaires internationales et président de la Banque centrale du Brésil. Parmi ses maintes activités, il a joué un rôle primordial dans le cadre du plan Real ; en formuler les termes, le rendre opérationnel et assurer son administration. A l’issue d’une année sabbatique (1999), il a fondé Rio Bravo Investimentos (2000), une société d’investissements qui correspond aujourd’hui à son activité principale. Il appartient aussi à plusieurs conseils d’administration et consultatifs et est régulièrement sollicité dans le but d’intervenir dans l’évènementiel d’entreprises.

BENJAMIN ARDITI

Le devenir-autre du politique: Notre futur proche s’inscrit dans le post-libéralisme et la politique virale

Je proposerais deux critères permettant de sous-tendre le devenir-autre du politique. L’un vient du fait que nous opérions d’ores et déjà dans un cadre post-libéral compte tenu du dépassement de deux piliers du libéralisme; d’abord parce que le politique va au-delà de la représentation électorale et déborde les frontières territoriales de l’Etat souverain, ensuite quoique les personnes ne se connaissent pas les unes les autres elles peuvent agir de concert sans avoir à solliciter en permanence les structures de commandement propres aux partis politiques et aux mouvements sociaux. A propos des systèmes ouverts ayant multiples points d’accès, l’image du rhizome de Deleuze montre comment penser ce genre de coordination. J’y ferai appel pour parler de la connectivité virale et de la politique virale qui se nourrissent des nouveaux média. J’examinerai ces deux indicateurs du devenir-autre du politique en évoquant brièvement une série d’insurrections, de l’argentin “Qu’ils s’en aillent tous, qu’il n’en reste aucun” à plusieurs autres mouvements qui ont vu le jour cette année-ci: les étudiants chiliens; les révoltes en cours, au Maghreb, et le M-15, en Espagne. Quel qu’en soit le dénouement, j’ai le sentiment que ces insurrections renvoient aux «médiateurs disparaissants» dont parle Fred Jameson; en quelque sorte des médiateurs qui font office de symptôme de l’émergence de notre devenir-autre. Pour terminer, je ferai une ébauche de la politique virale et chercherai à en évaluer les pour et les contre.

Benjamin Arditi est professeur d’Etudes politiques à l’université nationale autonome du Mexique (UNAM). Il a fait son doctorat de 3ème cycle à l’université d’Essex, au Royaume-Uni. Professeur près les universités Santa Catarina (Brésil), Maryland (Etats-Unis) et d’Essex (RU), il a également été invité à dispenser des cours auprès des universités d’Edimbourg et de Saint Andrews (Royaume-Uni). Au Paraguay, il est à la fois directeur de recherche au sein d’une ONG, journaliste et activiste. Après la chute de Stroessner, il y a lancé une campagne d’éducation civique à l

"Percepção e representação contemporâneas de África e da América Latina": HOJE e AMANHÃ na Gulbenkian (Lisboa)

© Filipe Branquinho, "Vendedor ambulante de flores", 2011.

Cortesia do artista

É hoje, no Auditório 3 da Fundação Calouste Gulbenkian, das 09h30 às 17h30, que se realiza a primeira apresentação do "Observatório de África e da América Latina".

Resultante dos workshops de investigação que o Programa Gulbenkian Próximo Futuro concretizou desde 2009, este seminário será constituido por comunicações de investigadores ligados a universidades, centros de pesquisa e organizações não-governamentais.

Fruto da parceria com o Théâtre de La Ville de Paris, este modelo de seminário será concretizado no dia 17 de Novembro, na capital francesa, com investigadores aí radicados.

PROGRAMA

09H30

LUÍSA VELOSO

Das categorias de pensamento às categorias de conhecimento

Com esta apresentação, propõe-se discutir os processos sociais de reflexão e construção de categorias de pensamento sobre a realidade, construção entendida em sentido lato, abarcado desde as actividades de investigação, de intervenção social (política, intelectual, etc.) até às de expressão artística. Estas convertem-se em categorias de conhecimento, mais ou menos elaboradas, mais ou menos destinadas a um ’uso’ ordinário ou extraordinário, traduzindo-se na construção de quadros de conhecimento estruturados. A realidade é, neste sentido, objecto de um processo de estruturação em função dos quadros de pensamento tendencialmente dominantes. No entanto, são múltiplas as leituras existentes e, ainda que nem sempre dominantes, são dotadas de especificidades próprias. Perspectiva-se equacionar esta dupla existência dos quadros de conhecimento dominantes e dos ’outros’ e algumas das estruturas de relações entre ambos.

Luísa Veloso é socióloga e investigadora no Centro de Investigação e Estudos em Sociologia, do Instituto Universitário de Lisboa, desde Março de 2008. Foi docente na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, entre 1990 e 2008. Licenciada e doutorada em Sociologia, tem desenvolvido actividades de investigação em áreas diversas, com particular ênfase na Sociologia do Trabalho, da Ciência e Inovação e da Educação. É co-programadora do Ciclo Documente-se, desde a sua criação (2008), e do Ciclo de Cinema Rupturas, que teve lugar na Cinemateca Portuguesa (2010). É autora de diversos livros e artigos.

MAGDALENA LÓPEZ

A melancolia geradora do fracasso utópico em Cuba

A literatura cubana das últimas duas décadas oferece variados testemunhos sobre o fracasso do sonho socialista. No entanto, o fim da fé na utopia não tem implicado a perda de sentido. O estudo de “La novela de mi vida”, de Leonardo Padura (2002), “Muerte de Nadie”, de Arturo Arango (2004), e “Otras plegarias atendidas”, de Mylene Fernández Pintado (2003), mostrará os imaginários emergentes que se depreendem da ligação entre utopia, fracasso e melancolia, para sugerir subjectividades alternativas ao discurso oficial.

Magdalena López é investigadora de pós-douramento no Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa. Tem um doutoramento em literatura latino-americana da Universidade de Pittsburgh. Especializa-se em temas sobre cultura e literatura do Caribe hispano-americano. Tem publicado vários artigos, entrevistas e resenhas na imprensa (Latin American Research Review,  Revista Iberoamericana, Dissidences, La Habana Elegante y Revista Encuentro de la Cultura Cubana).  O seu último livro intitula-se "Nuestra América: Imaginarios sobre Estados Unidos en Cuba y República Dominicana". Actualmente, desenvolve um projecto de investigação comparativo entre as literaturas recentes das ilhas de Porto Rico, Cuba e a República Dominicana.

[10h50 – 11h10 Pausa para café/chá]

ANA SÉCIO

África no Imaginário Português: Corpo e Identidade na Arte Contemporânea Portuguesa

África integra o imaginário português desde há séculos. Cenário que tem início com as Navegações e que adquire mais expressão a partir dos finais do século XIX, com o maior impacto da colonização portuguesa. Há, ainda, que assinalar a ideologia oficial do Estado Novo e o pós-25 de Abril, que conta com as memórias dos ex-colonos e dos seus descendentes, elementos que, em muito, contribuem para a configuração deste imaginário. O Portugal pós-colonial assume-se como um importante ponto de chegada de indivíduos de diferentes nacionalidades, onde o convívio e o debate entre as representações de África se fazem notar. Nesta comunicação, partindo da noção de mito postulada por Roland Barthes, em “Mitologias”, pretendemos reflectir sobre a dimensão mítica de algumas dessas representações na arte contemporânea portuguesa, sobretudo no que concerne ao corpo e à configuração de identidades plurais, porque forçosamente multiculturais.

Ana Sécio é aluna do mestrado de Estudos de Cultura, na Universidade Católica Portuguesa, onde fez a licenciatura em comunicação social e cultural, na variante cultural. Estagiou na RDP África, colaborando em programas como “Escrever na Água”, “Nakurandza Moçambique” e “Djumbai”. Tem trabalhado na área de produção de conteúdos para programas televisivos.

ANTÓNIO PINTO RIBEIRO

Itinerário exaltante

A questão da representação é central na História Cultural do Ocidente - não é por acaso que Aristóteles lhe dedica uma parte substantiva da sua obra - e tornou-se um tema fulcral em toda a produção teórica tanto nos Estudos de Cultura como nos mais subtis estudos do pós-colonialismo. A representação não só reforça a ideia e a marca da ausência, e a sua substituição por outro significante, como é um acto de criação e nesse sentido resulta de uma subjectividade onde a ideologia e o biográfico tomam papéis preponderantes. No caso concreto de obras documentais (ou que se afirmam como tal) de escritores europeus, em que resulta esta criação? Tomaremos como estudo de caso um exemplo emblemático de uma obra inovadora sobre os territórios ex-colonizados que é “Baía dos Tigres”, de Pedro Rosa Mendes, para tentar entender a construção social resultante desta representação particular.

António Pinto Ribeiro nasceu em Lisboa. A sua formação académica foi feita nas áreas da Filosofia, Ciências da Comunicação e Estudos Culturais. É nestas áreas que tem desenvolvido o trabalho de investigação e de produção teórica publicado em revistas da especialidade. É professor-conferencista de várias universidades internacionais e professor-associado da Universidade Católica. A par da sua actividade de investigador e de professor tem tido uma prática de programaçã o artística e de gestão cultural com a organização de vários programas, festivais e exposições nacionais e internacionais. É o Programador-Geral do Programa Gulbenkian Próximo Futuro.

Moderadora: Fátima Proença (ACEP)

[12h30-14h30 Pausa para almoço]

FÁTIMA PROENÇA

Entre o entretenimento e a assistência: ’comunicação’ e ’ajuda’ como contributos para a fragilização e a dependência

Diversas formas actuais da ’sociedade do espectáculo’, tal como caracterizada por Debord há mais de três décadas, oferecem-nos construções também actualizadas do ’fardo do homem branco’, voltando a aprisionar África numa teia de conceitos, onde ’humanitário, ’fragilidades’, ‘necessidades’ arriscam ser a nova linguagem de velhas relações de poder. Num quadro de procura de construção de múltiplas cidadanias, há legitimidade para papéis como os de espectadores ou de aprendizes de feiticeiro?

Fátima Proença intervém na cooperação não governamental para o desenvolvimento desde a década de 80, em processos de investigação/acção, de inovação na documentação e comunicação sobre África e de advocacia na sociedade portuguesa, em colaboração estreita com organizações da sociedade civil africana. Dirige, desde 1997, a ACEP – Associação para a Cooperação Entre os Povos, ONG e, entre 2002 e 2008, presidiu à Plataforma portuguesa de ONGD.

FREDERICO DUARTE

Factor Favela

O Brasil é hoje mais do que uma nação tropical de praia, samba e futebol: é uma superpotência do século 21. Está, por isso, na hora de o mundo, ou pelo menos o mundo do design, prestar a devida atenção ao design brasileiro. Mas também está na hora de os designers brasileiros tratarem o seu povo, um de seus principais valores, com o respeito que ele merece. De que forma é que a prática, a cobertura jornalística, a curadoria e a crítica académica do design brasileiro estão a misturar origem com identidade, oportunidade social com oportunismo de design, ’gambiarra‘ com inovação frugal, realidade com estereótipo?

Frederico Duarte estudou design de comunicação em Lisboa e trabalhou como designer na Malásia e em Itália. Em 2010 concluiu o mestrado em crítica de design na School of Visual Arts em Nova Iorque. Enquanto crítico e curador de design tem, desde 2006, escrito artigos e ensaios, contribuído para livros e catálogos, dado palestras e workshops, comissariado exposições e organizado eventos sobre design, arquitectura e criatividade. Actualmente lecciona na ESAD, Caldas da Rainha, e na Faculdade de Belas Artes, da Universidade de Lisboa.

[15h50 – 16h10 Pausa para café/chá]

ALEXANDRE ABREU

Migrações e Desenvolvimento

A questão dos nexos causais entre as migrações e o desenvolvimento dos territórios de origem, nomeadamente no âmbito de espaços sociais transnacionais criados e sustentados por migrantes, tem sido objecto de atenção acrescida nos últimos anos. Neste contexto,  o caso da comunidade de origem guineense residente em Portugal constitui um exemplo particularmente interessante, em virtude do carácter e intensidade das práticas transnacionais que tem desenvolvido de forma particularmente consistente. Serão apresentados alguns elementos exemplificativos destas práticas e dos seus efeitos ao nível das famílias e comunidades de origem na Guiné-Bissau, os quais servirão posteriormente como base para uma breve reflexão mais ampla, em torno da fluidez do significante ’desenvolvimento‘, no contexto deste debate.

Alexandre Abreu colabora com o Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento (CEsA) do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa (ISEG/UTL), no contexto de dois projectos que se enquadram nas actividades do Observatório ACP (África, Caraíbas e Pacífico) para as Migrações - uma iniciativa dinamizada pela Organização Internacional para as Migrações, de cujo Conselho Consultivo o ISEG/UTL é um dos membros institucionais. Um destes projectos, que se encontra actualmente em curso, procura identificar o potencial de desenvolvimento da diáspora guineense residente em Portugal e em França, para o desenvolvimento do seu país de origem. Recentemente, concluiu o seu projecto de doutoramento, desenvolvido na School of Oriental and African Studies, da Universidade de Londres, o qual incidiu sobre a economia política das migrações e desenvolvimento na Guiné-Bissau.

SOFIANE HADJADJ

Edições Barzakh

No dia-a-dia, o meu trabalho consiste em dar conta do mundo, do real, editando em Argel ensaios e romances. Num contexto político, económico e social conturbado – desde a célebre ’Primavera árabe‘ aos diversos conflitos que grassam por África – onde escasseiam as liberdades. E não deixo nunca de me interrogar acerca do sentido da minha profissão. Sou constantemente compelido a justificar os meus actos: qual a utilidade de publicar livros? E que livros? Escrever e editar constituem para mim duas formas de resistência perante as desordens do mundo: resistir às proibições, resistir às instrumentalizações, resistir ao desespero.

Mas, em meu entender, a questão essencial é saber que ideias almejamos promover, que histórias pretendemos contar aqui na Argélia, ou seja no Norte de África, que pertence ao mundo árabe. Se é não só aquilo que ‘pretendemos’ mas ainda aquilo que ‘podemos’.

O pensamento ou a ficção não são neutrais. As ideias, as histórias, são testemunhos daquilo que somos, daquilo que vivemos, do nosso imaginário, isto é da nossa capacidade para nos libertarmos de cangas ideológicas e de nos projectarmos para horizontes abertos.

Actualmente, dadas as recentes reviravoltas, procuro pensar naquelas que poderiam ser as ‘novas’ ideias, as ‘novas’ narrativas que, de outra maneira, contariam África, o mundo árabe, distanciando-se tanto quanto possível dos clichés sobre o terrorismo, a pobreza ou as mulheres; estando nós no cruzamento de tantas influências (Mediterrâneo, Saara, Europa, Islão…), como será possível inventar novos sonhos.

Sofiane Hadjadj (Éditions BARZAKH) nasceu em 1970, em Argel. Frequentou o ensino secundário e corânico em Tunes e concluiu o liceu em Argel, em 1989. De 1990 a 1997, estudou arquitectura em Paris. Em 1998, regressou a Argélia e, em Abril de 2000, criou, com Selma Hellal, as Edições Barzakh. Trata-se de uma casa editorial dedicada à criatividade e que conseguiu revelar muitas vozes da literatura argelina contemporânea (tanto de língua árabe como francesa). A partir de 2004, esta editora passou a incluir, nas suas publicações, ensaios e livros de arte, assim como desenvolveu parcerias com outras editoras francesas e árabes, nomeadamente Actes Sud (França) e Dar Al-Jadeed (Líbano).

Actualmente, o catálogo das Edições Barzakh é composto por mais de 130 títulos. Em Dezembro de 2010, foram galardoados com o Grande Prémio da Fundação Príncipe Claus dos Países Baixos para a cultura.

Sofiane Hadjadj colaborou em diversas publicações internacionais, quer no mundo árabe quer na Europa. Também foi cronista cultural no El Watan, jornal diário em língua francesa, e na Chaîne 3, da emissora radiofónica nacional. Enquanto escritor, publicou novelas e duas narrativas de que se destaca “Un si parfait jardin” (Le Bec en l’Air, 2008).

Moderador: António Pinto Ribeiro (PGPF)

Todos os eventos têm entrada livre, sendo que as conferências dos dias 15 e 16 de Novembro têm tradução simultânea assegurada, bem como transmissão on-line, em versão compatível com IPHONE | IPAD | Android: http://www.livestream.com/fcglive ou http://live.fccn.pt/fcg/ .

Mais informações: [email protected]

os "Encontros de Bamako'2011" já começaram!

Lien Botha, "Parrot Jungle", 2009 

Já inaugurou a mais recente edição dos "Rencontres de Bamako" (Encontros de Bamako)! Na sua 9.ª edição o tema geral desta bienal de fotografia é "Por um mundo duradouro" ("Pour un monde durable") e o Programador-Geral do Próximo Futuro, António Pinto Ribeiro, foi convidado a integrar o júri internacional.

Les Rencontres de Bamako proposent en 2011 une réflexion sur la quête d’un monde durable, avec la volonté d’esquisser un état des lieux et de prêter une attention particulière aux signes et aux formes de résistances possibles. La forte adhésion au thème proposé n’a fait que confirmer l’engagement social et politique des artistes africains.

Les préoccupations écologiques, jadis limitées à un cercle restreint de visionnaires alertes, font désormais partie de notre quotidien et sont au cœur de tous les débats.

Aqui encontram o programa completo desta edição (1 de Novembro de 2011 - 1 de Janeiro de 2012), e aqui a história dos "Encontros" que vêm sendo organizados desde 1994, constituindo a mais importante bienal de fotografia africana.

exposições em LISBOA e PARIS: 16 e 18 de Novembro!

ROBERTO HUARCAYA, "Alessandro. Chorrillos

(da série 'Recreación Pictórica', 2009-2011)".

EXPOSIÇÕES *  LISBOA - PARIS

É também no âmbito das actividades PRÓXIMO FUTURO de Novembro (produzidas em colaboração com o Programa Gulbenkian de Ajuda ao Desenvolvimento) que, paralelamente à realização da 1.ª apresentação do Observatório de África e da América Latina e à 3.ª parte do ciclo das grandes Lições, inauguram duas exposições de fotografia relacionadas com a "percepção e representação contemporâneas de África e da América Latina" (tema geral das conferências que serão apresentadas em Novembro).

Ligando as cidades de Lisboa e Paris através de parcerias entre a Fundação Calouste Gulbenkian, a Casa da América Latina (Lisboa) e o Théâtre de la Ville (Paris), estas iniciativas contam ainda com o apoio da ACEP, Câmara Municipal de Lisboa e Embaixada do Peru.

No dia 16 de Novembro, em Lisboa, precisamente na sequência das grandes Lições PRÓXIMO FUTURO (Aud. 2 da FCG), inaugura às 19h00, no Palácio Galveias, a exposição do fotógrafo peruano Roberto Huarcaya, intitulada "Subtil Violência".

Com a curadoria de António Pinto Ribeiro, a proposta de Huarcaya resulta de um projecto de investigação em torno das representações visuais alusivas à construção da comunidade histórica peruana, partindo de referências locais no sentido de expandir a sua leitura e as suas influências ao nível nacional, regional, continental e, finalmente, global. “Propostas que nos vão dando pistas, informação sobre diversas coordenadas temporais, espaciais e formais, sobre este lentíssimo processo de misturas, desenvolvimento e tensão, de mudanças constantes, que levam o país a transitar, de um modo disperso, para esse propósito de se constituir como nação” (Roberto Huarcaya).

No dia 18 de Novembro, em Paris, desta vez na sequência da apresentação das grandes Lições no Théâtre de la Ville, inaugura no mesmo espaço, às 19h00, a exposição do fotógrafo sul-africano Pieter Hugo, dedicada ao fenómeno "Nollywood".

Nollywood 

 

Na série de fotografias intitulada “Nollywood”, Pieter Hugo confronta o papel do fotógrafo no domínio onde interagem a ficção e a realidade. “Nollywood” é considerada a terceira maior indústria cinematográfica do mundo, lançando perto de 1000 filmes por ano para o mercado de home vídeo. Tal abundância é possível devido ao facto de os filmes serem realizados em condições que assustariam a maioria dos realizadores independentes ocidentais. Os filmes são produzidos e comercializados em apenas uma semana: equipamentos de baixo custo, guiões muito básicos, actores escolhidos no próprio dia da filmagem, locais de filmagem da ’vida real’.

Em África, os filmes de “Nollywood” são um raro exemplo de auto-representação nos meios de comunicação social. A rica tradição de narração de histórias do continente, comunicada de forma abundante através da ficção oral e escrita, é transmitida, pela primeira vez, através dos meios de comunicação social. As histórias na tela reflectem e apelam às vivências do público: os protagonistas são actores locais; os enredos confrontam o espectador com situações familiares de romance, comédia, bruxaria, corrupção, prostituição. A narrativa é exageradamente dramática, sem finais felizes, trágica. A estética é ruidosa, violenta, excessiva; nada se diz, tudo se grita.

Nas suas viagens pela África Ocidental, Hugo tem-se intrigado por este estilo distinto de construção de um mundo ficcional onde se entrelaçam elementos do quotidiano e do irreal. Ao pedir a uma equipa de actores e assistentes para recriar mitos e símbolos de “Nollywood” tal como se estivessem em sets de filmagem, Hugo iniciou a criação de uma realidade verosímil. A sua visão da interpretação do mundo pela indústria cinematográfica resulta numa galeria de imagens alucinatórias e inquietantes.

A série de fotografias retrata situações claramente surreais mas que podiam ser reais num set de filmagens; para além disso, estas estão enraizadas no imaginário simbólico local. Os limites entre documentário e ficção tornam-se bastante fluidos e somos deixados a pensar se as nossas percepções do mundo real são de facto verdadeiras.

 

Federica Angelucci

Mais informações no site do Próximo Futuro e/ou através do email [email protected]

OBSERVATÓRIO de ÁFRICA e da AMÉRICA LATINA

Pormenor de uma fotografia de Filipe Branquinho (cortesia do artista)

Falta menos de um mês para a primeira apresentação do OBSERVATÓRIO de ÁFRICA e da AMÉRICA LATINA!

É já no próximo dia 15 de Novembro (3f), às 09h30, no Aud. 3 da Fundação Calouste Gulbenkian, e a entrada é livre.

Eis as respectivas sinopses... a não perder!

O Observatório de África e da América Latina resulta dos workshops de investigação que o Programa Gulbenkian Próximo Futuro concretizou desde 2009. Nesta primeira apresentação serão proferidas comunicações de investigadores ligados a universidades, centros de pesquisa e organizações não-governamentais. Fruto da parceria com o Théâtre de La Ville de Paris, este modelo de seminário será concretizado no dia 17 de Novembro, na capital francesa, com investigadores aí radicados.

CONFERÊNCIAS *  LISBOA - PARIS

15 Novembro 2011, Terça / 09h30 - 17h30

Edifício-sede da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa), Aud. 3

Entrada livre

Oradores/investigadores: Alexandre Abreu (CEsA, ISEG/UTL), Ana Sécio (FCH/UCP), António Pinto Ribeiro (PGPF, UCP), Fátima Proença (ACEP), Frederico Duarte (FBAUL), Luísa Veloso (CIES, IUL), Magdalena López (CEC, FLUL), Sofiane Hadjadj (Éditions Barzakh, Argélia)

Migrações e Desenvolvimento, por Alexandre Abreu (CEsA, ISEG/UTL)

A questão dos nexos causais entre as migrações e o desenvolvimento dos territórios de origem, nomeadamente no âmbito de espaços sociais transnacionais criados e sustentados por migrantes, tem sido objecto de atenção acrescida nos últimos anos. Neste contexto,  o caso da comunidade de origem guineense residente em Portugal constitui um exemplo particularmente interessante, em virtude do carácter e intensidade das práticas transnacionais que tem desenvolvido de forma particularmente consistente. Serão apresentados alguns elementos exemplificativos destas práticas e dos seus efeitos ao nível das famílias e comunidades de origem na Guiné-Bissau, os quais servirão posteriormente como base para uma breve reflexão mais ampla, em torno da fluidez do significante ’desenvolvimento‘, no contexto deste debate. (Abstract)

África no Imaginário Português: Corpo e Identidade na Arte Contemporânea Portuguesa, por Ana Sécio (FCH/UCP)

África integra o imaginário português desde há séculos. Cenário que tem início com as Navegações e que adquire mais expressão a partir dos finais do século XIX, com o maior impacto da colonização portuguesa. Há, ainda, que assinalar a ideologia oficial do Estado Novo e o pós-25 de Abril, que conta com as memórias dos ex-colonos e dos seus descendentes, elementos que, em muito, contribuem para a configuração deste imaginário. O Portugal pós-colonial assume-se como um importante ponto de chegada de indivíduos de diferentes nacionalidades, onde o convívio e o debate entre as representações de África se fazem notar. Nesta comunicação, partindo da noção de mito postulada por Roland Barthes, em “Mitologias”pretendemos reflectir sobre a dimensão mítica de algumas dessas representações na arte contemporânea portuguesa, sobretudo no que concerne ao corpo e à configuração de identidades plurais, porque forçosamente multiculturais. (Abstract)

Itinerário exaltante, por António Pinto Ribeiro (PGPF, UCP)

A questão da representação é central na História Cultural do Ocidente - não é por acaso que Aristóteles lhe dedica uma parte substantiva da sua obra - e tornou-se um tema fulcral em toda a produção teórica tanto nos Estudos de Cultura como nos mais subtis estudos do pós-colonialismo. A representação não só reforça a ideia e a marca da ausência, e a sua substituição por outro significante, como é um acto de criação e nesse sentido resulta de uma subjectividade onde a ideologia e o biográfico tomam papéis preponderantes. No caso concreto de obras documentais (ou que se afirmam como tal) de escritores europeus, em que resulta esta criação? Tomaremos como estudo de caso um exemplo emblemático de uma obra inovadora sobre os territórios ex-colonizados que é “Baía dos Tigres”, de Pedro Rosa Mendes, para tentar entender a construção social resultante desta representação particular. (Abstract)

Entre o entretenimento e a assistência: ’comunicação’ e ’ajuda’ como contributos para a fragilização e a dependência, por Fátima Proença (ACEP)

Diversas formas actuais da ’sociedade do espectáculo’, tal como caracterizada por Debord há mais de três décadas, oferecem-nos construções também actualizadas do ’fardo do homem branco’, voltando a aprisionar África numa teia de conceitos, onde ’humanitário, ’fragilidades’, ‘necessidades’ arriscam ser a nova linguagem de velhas relações de poder. Num quadro de procura de construção de múltiplas cidadanias, há legitimidade para papéis como os de espectadores ou de aprendizes de feiticeiro? (Abstract)

Factor Favela, por Frederico Duarte (FBAUL)

O Brasil é hoje mais do que uma nação tropical de praia, samba e futebol: é uma superpotência do século 21. Está, por isso, na hora de o mundo, ou pelo menos o mundo do design, prestar a devida atenção ao design brasileiro. Mas também está na hora de os designers brasileiros tratarem o seu povo, um de seus principais valores, com o respeito que ele merece. De que forma é que a prática, a cobertura jornalística, a curadoria e a crítica académica do design brasileiro estão a misturar origem com identidade, oportunidade social com oportunismo de design, ’gambiarra‘ com inovação frugal, realidade com estereótipo? (Abstract)

Das categorias de pensamento às categorias de conhecimento, por Luísa Veloso (CIES, IUL)

Com esta apresentação, propõe-se discutir os processos sociais de reflexão e construção de categorias de pensamento sobre a realidade, construção entendida em sentido lato, abarcado desde as actividades de investigação, de intervenção social (política, intelectual, etc.) até às de expressão artística. Estas convertem-se em categorias de conhecimento, mais ou menos elaboradas, mais ou menos destinadas a um ’uso’ ordinário ou extraordinário, traduzindo-se na construção de quadros de conhecimento estruturados. A realidade é, neste sentido, objecto de um processo de estruturação em funç

"Tão perto, tão longe", na FNAC Guimarães

 

Este Domingo, dia 4 de Setembro, às 18h00, as 20 curtas-metragens editadas pela LX Filmes no âmbito do Programa Gulbenkian Distância e Proximidade passam no Fórum da FNAC de Guimarães, numa iniciativa da AVE-Associação Vimaranense para a Ecologia.

"TÃO PERTO, TÃO LONGE"

Em qualquer lugar do mundo, numa tentadora monocultura global, assistimos a uma acelerada uniformização dos hábitos, gostos e culturas, em que as experiências do quotidiano se tornam cada vez mais indiferenciadas. Entre a memória e o quotidiano, vinte realizadores foram convidados a escolher um aspecto singular da sua vivência e a realizar um filme de 5 minutos, através do qual procuram reflectir sobre a miscigenação da nossa ‘cultura global’.

O presente que veio de longe, Tiago Hespanha, Portugal

Tsutsumu, Masaki Karatsu, Japão

Eu não sei dizer o nome dela, Felipe Bragança, Brasil

Monumento, Donigan Cumming, Canadá

Namban Japan, André Godinho, Portugal

La Cucaracha, Afra Mejía, México

Gravata "à là Croate", Dan Oki, Croácia

Ping Pong, Yang Heng, China

A Burqa Vermelha, Roxana Pope, Inglaterra/Irão

As Almas de Metal dos Nossos Ancestrais, Svetlana & Zoran Popovic, Sérvia

Mohamed, Postal N.º 106, Bruno Ulmer, França

Ancestral e Moderno, Rui Xavier, Portugal

A Tendência deste Outono, Kim Jong-Kwan, Coreia

Hihokan, Kenji Murakami, Japão

Jogo Limpo, Ricardo Iscar, Espanha

Fixado em Vidro, Samba Félix Ndiaye, Senegal

Rede de Dormir, Marco Dutra, Brasil

Bandoneon, Sebastien Schindel, Argentina

O código da vida de A. Montrond, Margarida Cardoso, Portugal

Traje das Mulheres Herero, Vincent Moloi, África do Sul

Produzido por: Luís Correia / LX Filmes

Programador do Programa Gulbenkian Distância e Proximidade: António Pinto Ribeiro

já à vista na sede da Gulbenkian: Bamako-Lisboa!

Breve reportagem sobre a exposição "Fronteiras" (8.ª Bienal de Bamako/MALI), apresentada pelo Programador-Geral do PRÓXIMO FUTURO

A mostra foi inaugurada na 6f.ª passada, tendo contado com a presença de 739 pessoas! Durante o seu primeiro fim-de-semana recebeu 1088 visitas: 200 no Sábado e 888 no Domingo (dia em que a entrada é gratuita).

visita guiada à exposição nesta 4f.ª, 18 de Maio (Dia Internacional dos Museus), das 18h às 19h. E nos próximos três Domingos - dias 22 e 29 de Maio e 5 de Junho -, sempre às 15h30, também já estão agendadas visitas guiadas por Lúcia Marques.

Aqui há um atalho para fazer download do Encarte da Exposição e aqui encontram o novo jornal do PRÓXIMO FUTURO, acabadinho de sair do prelo, já com toda a programação para Junho e Julho. 

Mais informações, bilheteiras on-line e contactos do PRÓXIMO FUTURO aqui.

"Arriscar aquilo que abre caminhos": conversa com o programador-geral do PRÓXIMO FUTURO

Breve vislumbre do artigo "Arriscar aquilo que abre caminhos, conversa com António Pinto Ribeiro", por Marta Lança no BUALA.

ML: Como passa da dança para as questões interculturais e pós-coloniais?

APR: A relação não é directa nem casual. Acontece que, depois da minha formação em Filosofia e em especial Estética, fui convidado para criar um campo de estudos teóricos na recentíssima Escola Superior de Dança. Aceitei e pensei “vamos lá estudar”. E foram anos de leituras compulsivas sobre tudo o que havia sobre dança, corpo, coreografia. Poderia ter sido cinema, literatura, artes visuais, teatro que foram sempre áreas do meu interesse. A dança funcionou durante anos como a ponta de um iceberg. Depois, uma enorme curiosidade que me é própria, levou-me a ver espectáculos, filmes, concertos que não eram necessariamente da tradição ocidental e branca, o fascínio pelo continente africano e pelas questões de cultura e de ideologia a elas associadas conduziram-me ao multiculturalismo; inicialmente, diga-se, de uma forma muito inocente.

ML: É o seu método de trabalho, uma curiosidade de abertura ao mundo?

APR: Mais do que método, é uma forma de estar que tem consequências muito produtivas. Mas também estou em crer que, a determinada altura, uma certa fisicalidade e corporalidade presentes nestas experiências evocaram a minha infância e adolescência em África, o que me motivaria a revisitar alguns países africanos.

(...)

ML: E parece-me que incluir reflexão e não apenas divulgação é uma linha muito sua… Sempre se interessou por cruzar o mundo teórico com propostas artísticas?

APR: Acho essencial, em todas as instituições, que a linha de programação seja comunicada. No meu entender a programação cultural decorre de um contrato entre os públicos e os artistas ou os autores. O programador é um mediador mas, nesse contrato que faz, deve anunciar aos parceiros a sua missão, as suas opções e a razão das mesmas. A programação cultural baseia-se numa linha de argumentação cujo destinatário é um auditório tendencialmente universal. Por outro lado, os públicos devem ter acesso a chaves de aproximação ao que lhes é apresentado, o seu modo original de produção, se já foi apresentado noutro contexto, etc. Torna tudo muito mais claro e resgata a legitimidade que não se tem se não for devidamente informado. Isso pode ser feito de forma interessante e criativa. A programação cultural é uma actividade fascinante que tem tanto de risco como de fruição e de partilha raras. Mas exige uma atenção permanente e um cuidado com os públicos, artistas, formadores de massa crítica e uma vigilância permanente sobre o poder que se adquire nesta actividade. É fulcral uma auto-crítica permanente que não permita que se substitua ao artista nem ao público, sem contudo ceder a gostos massificadores ou à pressão daqueles que acham que representam os artistas.

(...)

ML: O que é para si a verdadeira interculturalidade? 

APR: No mais vasto conceito, a interculturalidade pode constituir uma estratégia de negociação cultural que conduz à construção de um projecto político de transformação das sociedades multiculturais. E alguns equívocos ou afirmações demagógicas são desde já de evitar. O primeiro de todos é o de que a cultura e pela cultura se resolvem os conflitos e os antagonismos. Nada de mais errado. A cultura pode constituir uma plataforma de aproximação, um modo negocial, mas nunca resolverá os grandes antagonismos, as grandes diferenças de interesses. Em caso algum, devemos pois deslocar para a cultura os problemas específicos das esferas da política, da economia e da religião. O segundo equívoco é pensar que a cultura é um bem e que, per si, contagia de bondade toda a acção humana. No que uma estratégia intercultural pode ser útil é no esclarecimento, tornando claros os conflitos e as suas razões, mas nem sempre eliminando-os. Aliás, a interculturalidade não pressupõe um reino definitivo da paz, inclui sim a possibilidade de tensão desejavelmente produtiva. Um último equívoco que se coloca é o que tende a divorciar os fundamentos culturais dos religiosos ou, pelo contrário, reduzir ao religioso. Desde T.S. Elliot pelo menos, que devemos saber que as culturas estão impregnadas de religião, o que se reflecte na produção cultural. E é assim que podemos falar de uma cultura cristã, presente mesmo em autores laicos, ou de artistas hindus e que, portanto, a interculturalidade transporta sempre traços de interreligiosidade.

Um quarto é aquele que concebe o interculturalismo como um diálogo entre blocos culturais homogéneos, em que todos os membros de uma cultura se identificam de uma forma absoluta. Na verdade, não existem blocos culturais homogéneos, e na mesma região cultural há ricos e pobres, mulheres e homens. E as pessoas identificam-se e agrupam-se também por clubes, orientações sexuais, associações profissionais, o que permite, por um lado, estabelecer pontes de comunicação entre regiões culturais diferentes e, por outro, encontrar fissuras entre membros das mesmas regiões.

A interculturalidade não é, pois, uma ideologia. Como estratégia, é uma forma inovadora de conviver e co-habitar nas sociedades contemporâneas, com a diversidade de grupos culturais e étnicos. De algum modo, é o estado mais evoluído da democracia mas, tal como esta, exige uma construção permanente e diária. É importante reconhecer igualmente que a interculturalidade faz-se a partir de vários pontos de partida, e não pode resultar de uma legislação ou normatização regrada apenas pela comunidade que acolhe. Supõe, por isso, uma negociação cultural cujo limite é a rejeição de todo e qualquer sofrimento infringido a alguém, a exclusão social, religiosa ou sexual.

Finalmente, tanto ou mais importante do que o já existente património cultural das diásporas, é admitir e até estimular a combinação cultural e o sincretismo que constituem o melhor índice de interculturalidade contemporânea. Só uma prática cultural e um programa político que combata o ressentimento face ao passado e privilegie o futuro tem a ver com a interculturalidade e a sua prática.

(...)

ML: Os Centros Culturais, provenientes do período cultural, enquanto mecanismos de controlo, de representações nacionalistas e promoção da língua, em alguns casos conseguiram transformar-se em plataformas interessantes de produção articuladas com artistas locais, mas é muito raro, porquê?

APR: O que acontece na maior parte das situações em África é que os grandes centros culturais das cidades são a única coisa que existe, então a responsabilidade é grande. Depende muito do director do centro: quando as pessoas são activas, interessadas, inteligentes, cultas as coisas correm bem. São as únicas plataformas possíveis de entendimento entre os artistas e intelectuais que lá se encontram e o lugar para apresentar produção local. Acho fulcral que os Centros Culturais Portugueses, por exemplo, possam apresentar programações de França ou Itália como o reverso também deve ser válido pois, afinal, são o lugar de apresentação das produções africanas. Não é o que acontece, normalmente sã o coisas bacocas, nacionalistas e anacrónicas. Nos casos dos Centros Portugueses as pessoas estão lá há 15 anos sem relação com a cultura contemporânea portuguesa a representar uma portugalidade que só existe na cabeça deles, e sempre se sentiram estranhos no país onde estão. Com excepções, é certo.

ML: Isto parte de um problema maior de não haver articulação, nem estratégia, nem investimento. Como experiências interessantes, refere o caso da política cultural brasileira. O que temos a aprender com o Brasil nesse capítulo?

APR: Imenso, a capacidade que eles tiveram de criar organizações intermédias entre as grandes instituições e o nada. Os Pontos de Cultura foram das coisas mais interessantes pois correspondem à escala do lugar onde foram instalados, às necessidades com um elevado grau de exigência.

(...)

ML: Voltando à sua programação, continua a equilibrar a produção europeia com estes estímulos de fora, que nos fazem repensar o nosso próprio esgotamento criativo.

APR: Acho que é muito estimulante. Houve uma fase em que a programação era para dar visibilidade a produções não europeias que mereciam ser vistas. Essa fase foi bem cumprida. Mas queria que concebêssemos como um lugar em que se criasse coisas novas a partir do que já foi a sua História, já não se trata de montra e mostra, implica ter um público e comunidade de artistas que olhe para isto de uma maneira diferente. Estou muito grato com o facto de o jardim Gulbenkian se ter tornado lugar de deleite de chineses, ucranianos, e que pessoas muito jovens tenham perdido o medo de frequentar lugares de cultura. 

(...)

[ver artigo completo aqui]

PAULO REIS (1960-2011): curador, crítico de arte, jornalista, professor, cozinheiro, amigo para sempre

 

Quem viu não esqueceu: Um Oceano Inteiro para Nadar, título significativo de uma exposição que em Maio de 2000 inaugurou na Culturgest de Lisboa, reunindo trabalhos de artistas brasileiros e portugueses contemporâneos, sob a curadoria de Paulo Reis e Ruth Rosengarten. 
Havia de facto todo um enorme "Oceano" a separar Portugal e o Brasil, como ainda hoje há, apesar de tudo. Mas nesse ano de viragem de século e (também por isso) de importantes revisões históricas, foi possível conhecer por cá, pela primeira vez com uma amplitude cronológica expressiva e sistematizada, uma selecção de nomes fundamentais da produção artística brasileira contemporânea. Paulo Reis, que ao longo da década de 90 se destacou como jornalista cultural no Jornal do Brasil e assessor cultural do Museu da República do Rio de Janeiro, tinha vindo a Portugal pela primeira vez em 1998, a convite de António Pinto Ribeiro (nessa altura, director artístico da Culturgest), dar uma conferência sobre as artes na América Latina. E foi o início de Um Oceano Inteiro para Nadar...
Vi e escrevi sobre a exposição no jornal Expresso, onde era colaboradora, marcada pelo cruzamento inédito dessas autorias, num espaço tornado de encontro e de reconhecimento também entre os dois curadores dessa mostra (que até então não se conheciam e, ainda assim, aceitaram trabalhar em equipa para nos dar uma visão desses dois lados do Atlântico). Mas só tive o privilégio de conhecer pessoalmente o Paulo quando me acolheu numa primeira visita ao Brasil, em Abril de 2003. A sua disponibilidade para me mostrar o Rio de Janeiro foi total, levando-me pelos espaços e principais instituições, apresentando-me aos artistas, aos seus amigos de todo o lado, deixando-me entrar assim, no seu mundo pessoal e profissional, onde aprender, conhecer, partilhar eram uma mesma atitude de vida, uma celebração do humanismo que não devemos abandonar. Numa entrevista dessa altura, realizada a propósito da primeira individual do histórico artista brasileiro Nelson Leirner em Portugal (Culturgest do Porto, 2003), disse-nos: "meu ideal de conhecimento é o homem da Renascença, que conjugava todos os conhecimentos existentes em uma mesma pessoa. (...) Não entendo uma pessoa que não tenha interesse em filosofia, religião, cultura, não percebo qual é o papel desta pessoa diante da humanidade. Lembro-me das palavras de Leonardo Da Vinci, que homem não é uma construção física apenas, que veio ao mundo para encher sanitas, mas deixar um legado à humanidade. É o mesmo princípio que Beuys falava que todo o homem é um artista." E deu-nos o seu próprio "retrato falado": "Minha formação foi muito especial, estudei em colégio religioso, onde tive acesso à filosofia, à teologia, ao conhecimento aprofundado das ciências humanas. Estudei Comunicação Social e Filosofia, fiz dois mestrados em História da Arte, estou sempre complementando meus conhecimentos em Estética, História, Sociologia, Antropologia. Essas cadeiras estão inseridas em meu quotidiano, uso-as de forma orgânica. Esse real interesse por outras áreas, que me possibilitou que abrissem meus horizontes, é meu mecanismo de percepção do mundo. Então respondo sua pergunta dizendo que não há possibilidade do homem contemporâneo longe de uma múltipla faceta." 
Paulo Reis preparava então um seminário de História e Crítica de Arte com a intenção de "aproximar Brasil de Portugal e da Espanha e apoiar a divulgação e circulação de ideias sobre a arte contemporânea internacional", seminário esse que, com muito esforço e sacrifício pessoal devido à dificuldade de apoios, conseguiu realizar no Rio de Janeiro em Setembro de 2004. Chamou-lhe sintomaticamente Brasil-Portugal: uma ponte para o futuro e reuniu os principais curadores e críticos de arte, directores de instituições culturais e artísticas de Portugal, artistas e demais agentes culturais portugueses, de tal modo que, meio a brincar, meio a sério, se distribuíram os convidados em diferentes aviões, para que "se algo desse errado" Portugal não ficasse "desfalcado de cabeças pensantes". Foi nesse fórum que Paulo conheceu o crítico de arte espanhol David Barro, cuja tese publicada lera antes, e com quem viria a aprofundar a triangulação Brasil-Portugal-Espanha através de várias iniciativas. Desde a curadoria da Chocolatería - Espaço de Experimentação (em Santiago de Compostela, Espanha) até à co-criação e co-direcção da revista de arte contemporânea Dardo(publicada em português, espanhol e inglês), passando pela exposição-livro Parangolé: Brasil/Portugal/Espanha, entre muitas outras mostras e textos produzidos e difundidos em estreita cumplicidade profissional e generosa amizade. Já em 2009, viria a montar em Lisboa, cidade que adoptou como sua (depois do Rio de Janeiro), juntamente com outros dois amigos - o curador lusoinglês Lourenço Egreja e a artista e produtora brasileira Rachel Korman -, o seu projecto de sonho, concretizando o seu lema de vida: Carpe Diem-Arte e Pesquisa.
Paulo era assim, trabalhava com a seriedade de um profissional "até ao tutano", demonstrando sem complexos o carinho que tinha pelas mais diversas pessoas que o rodeavam e assumindo orgulhosamente as suas amizades incondicionais. Jornalista e filósofo de formação, curador em todos os momentos (no sentido "daquele que cuida" dos outros), crítico de arte por inquietação criativa genuína, professor com profunda "missão" laica (muito para além das aulas dadas em universidades e museus), cozinheiro pela alegria do convívio com os amigos e família, a quem dava tudo o que podia. Hoje lembro o Paulo, não esquecendo como ele gostava de celebrar a alegria da vida, que para ele se confundia necessariamente com a partilha do conhecimento. Eis palavras suas nessa entrevista de 2003, que lamentavelmente continuam tão actuais: "Sinto falta de um diálogo maior entre as instituições culturais portuguesas e brasileiras. E não adianta esperar a nível de ministérios, eles estão muito ocupados em fazer burocracia. Tem que haver um interesse entre as grandes instituições do Porto e Lisboa com o Rio e São Paulo. Falo em cooperação, em fechar uma grelha de exposições conjuntamente, por exemplo: uma boa exposição de um artista português deve ser feita em parceria com uma instituição brasileira e vice-versa, garantindo a circulação de ideias. Ao ministérios da cultura, de ambos países, caberia apoiar financeiramente e aliviar os entraves burocráticos, mas nunca eles serem agentes de divulgação, não dá certo. Cabe às instituições. Assim que penso. Sinto falta do Brasil olhar mais para Portugal e não ficar preso à cafonice do mercado francês, com exposições de surrealismo, Rodin, essas coisas que ninguém tem mais pachorra; ou ao mercado lógico norte-americano, com instituições picaretas, mandando umas porcarias de exposições tipo Andy Warhol e Keith Haring, cobrando uma "pipa de massa", como vocês dizem aqui. Não que estes artistas não sejam importantes, mas as mostras que chegam ao Brasil, francamente, são uns fracassos! Mas é o pensamento, tipo, "lá só tem macacos, qualquer coisa serve!" Chega disso. Espero que esta entrevista, que sei que não agradará a todos, ajude a compreender melhor o que estamos tentando fazer, que é quebrar o ranço modernista e re-aproximar duas culturas que podem crescer mutuamente, e que por laços históricos e linguísticos serão sempre inseparáveis, quer queiramos quer não." Paulo Reis, querido amigo, um profundo agradecimento pela tua existência.

Lisboa, 25 de Abril 2011

Lúcia Marques, com os contribu tos de António Pinto Ribeiro

(Texto publicado hoje no Público)