Ó de Nuno Ramos
Publicado31 Mar 2010
"Ó" de Nuno Ramos é um livro que se poderia integrar num género raro da Literatura, chamemos-lhe de Literatura Física cujo iniciador no século XX terá sido Paul Valéry com Mr Teste.
Quase sempre começo pelo rosto. Há uma cavidade em sua bochecha onde minha mão encaixa perfeitamente, um côncavo e convexo milimétrico, suave, que pressupõe o acordo prévio (mas este não me interessa) entre sua cabeça e meu ombro. Sou capaz de trocar um dedo por este gesto, e me lanço a ele imediatamente, tentando encurtar o 'bom dia', ou 'você pagou a conta da luz?, ou 'vamos sair hoje à noite?' com que ela me recebe. p.48
É uma obra que absorveu Parménides, Novalis e Herberto Hélder e os remixou:
que é que fica quando não sei dizer se o dia justo coube inteiro no meu gesto, quando a solidão compartilhada - a borra de um café - é quase suficiente e posso respirar os postes em sua luz clara, aquelas janelas assombradas, a rua soturna entrando pela minha blusa (incêndio vermelho) p.95
É um livro-transe:
Não há corpo que me prenda. Não há pena que me cubra. Não me machucam as mãos não saber nada delas. Não me machucam as mãos ter um estoque de palmas - e de pés e de pâncreas. Não posso transplantar meus órgãos, embora tenha tantos sobrando. faria dinheiro com isso. tenho sete retinas no bolso, duas plantas em cada pé. Lanço do viaduto o infinito intestino. Atiro no chapéu do mendigo o anel de um cu antigo e deixo afundar no asfalto uma de minhas testas. p.175
Há que lê-lo.
apr