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Fur

Prosa & Verso, O Globo, 25.02.2012

Fur

                                                 com cara de Whitman

foi assim que você pensou que eu viria ao mundo

foi assim que que você me viu na floresta

foi assim que você me viu pendurado no poste elétrico

sempre pendurado num ramo qualquer, sempre usando

o verão.

você se lembra daquele verão no Brooklin

em que ficámos perseguindo os bombeiros

durante todo o dia apenas para ver

uma vez e depois outra vez

o leque aquático que se abria sobre o fogo?

você citava poetas húngaros mas nesse tempo

eu só queria saber de inventar uma língua

que não existisse.

você se lembra do concierge que nos recebia

na pensão do Brooklin como se nunca

nos houvesse visto antes?

e não havia semana que passasse

em que nós não dormíssemos

pelo menos uma madrugada

na pensão do Brooklin.

me lembro dos dólares amassados

que eu semanalmente tirava do bolso

para pagar a Doug

eu sabia o nome de Doug

o Doug nos tratava disfarçadamente

por menina e menino.

você falava que os dólares vinham

sempre com uma forma diferente

eu adoro como você consegue tirar um coelho do bolso

eu adoro como você consegue tirar uma lâmpada do bolso

eu adoro como você consegue tirar a Beretta 92fs do bolso

foi assim que você pensou que eu ficaria

no mundo

com corpo de besta vestida

usando um lápis pousado na orelha

foi assim que você me viu

pedindo três ovos para Miss Elsie

a senhora da mercearia na Court Street

ela me deu oito ovos

porque ela sempre dava alguma coisa

ela me achava uma graça e ela não acreditava

em números ímpares. eu também não.

me lembro de você na mercearia

do Brooklyn

você costumava ficar lá atrás

brincando na secção das ferramentas.

se eu tivesse mais do que um coelho,

uma lâmpada ou uma pistola

eu teria te comprado um Black n' Decker

eu acho que você seria a pessoa mais feliz da ilha

com um Black n’ Decker enfiado no cinto.

foi assim que você pensou que eu ficaria no mundo,

usando flores em meu cabelo negro,

sempre escondidas no emaranhado dos cachos

sempre escondidas no emaranhado do caos

de minha cabeça negra.

só você sabia quantas flores eu usava

porque agora eu já sei

que você dedicava as noites

à contagem. Deus não dorme

e você também não. 

Matilde Campilho

Matilde Campilho nasceu em Lisboa em 1982. Morou em Madrid, Milão, Florença e Moçambique. Mora no Rio de Janeiro, onde escreve.