Bogotá
Publicado2 Fev 2010
Na parte mais antiga da cidade, na Candelaria, um bairro da época colonial, as casas são coloridas, muitas ainda em madeira. É neste bairro que se situa a maioria dos equipamentos culturais: a Biblioteca pública Luís Ángel Arango, o centro cultural do Banco de la República, o Museu Colonial, a Igreja Matriz, assim como algumas dezenas das universidades que existem só em Bogotá. É neste pedaço da cidade que mais se sentem os efeitos da colonização, neste caso espanhola. Eles são visíveis um pouco por todo o lado, como por exemplo na geometria da sua malha urbanística e no traçado arquitectónico dos edifícios civis e religiosos, sobretudo nestes últimos, que ostentam as formas estéticas que marcaram o Barroco opulento saído da Contra Reforma. Em Bogotá, como em outras cidades latino-americanas, a "história de arte" começa com o Barroco, com o seu aparato grandioso e programa de afirmação da doutrina católica apostólica romana. E não podemos deixar de nos intrigar sobre o modo como se terão sentido os colombianos sob a conquista ao serem invadidos por esta arte de excesso, por esta figuração de exaltação do sofrimento - Cristo crucificado, santos martirizados…. Como terá sido perplexo para eles receberem estas imagens, vindas de um lugar de que só sabiam o nome. E continua a ser intrigante saber como gerações sucessivas de colombianos lidam com o passado colonial, como vivem nestas casas de modelo importado, como convivem com esta memória. Ao contrário de outras cidades mais afro-latinas, em Bogotá a arte nativa de origem índia teve sempre uma criação paralela à arte erudita vinda da Europa. Poucas combinações houve entre as duas, o que provocou uma separação radical entre a arte popular de matriz índia e a arte erudita de tradição europeia que foi, e continua a ser - na sua expressão contemporânea -, uma arte sem expressão antropofágica. Embora alguns artistas notáveis como Luís Fernandes Roldán (n.1955), Doris Salcedo (n.1958), José Alejandro Restrepo (n.1959) e Carmen Elvira Brigard utilizem com frequência nos seus trabalhos linguagens comuns às duas.
Numa das maiores livrarias da América Latina leio O Problema da Habitação, de Ruy Belo, e espanta-me a imensidão, a qualidade e a organização dos livros expostos nesta livraria do Centro Cultural Gabriel García Marques. Mas, são caros os livros aqui, porque uma grande maioria é importada de Espanha e da Argentina. Vizinha da livraria, está a colecção de arte do Museu do Banco de Colômbia, onde “dormem” para sempre em seus retratos, de memória pintados por Victorino García Romero (1791-1870), as Monjas Muertas do Convento de la Concepción. Quase todas representou-as o pintor com caras de mortas antigas, muito mirradas, excepto a irmã Juana de San Francisco que, talvez por ser mais gordinha, exibe um rosto mais sereno, e a irmã Catalina Teresa de Santo Domingo, falecida em 1786 e pintada com a cabeça emoldurada por um lindo ramo de flores azuladas, assente sobre duas tábuas como se fosse japonesa.
Milhares de pequenos táxis amarelos atravessam continuamente Bogotá, seguindo-se uns aos outros em filas intermináveis como numa pista de feira de carrinhos de choque. Para lá do bairro histórico da Candelaria fica a parte mais recente da cidade, que cresceu para norte e para sul e que tem actualmente 1.587 Km2 de área e 8 milhões de habitantes - dos quais 1.6 milhões vive na pobreza - e 832 mil carros, ocupando o transporte privado 95% da rede viária. Aqui a cidade é semelhante a tantas outras metrópoles sul-americanas, desigual socialmente, caótica e harmoniosa, segura e violentamente perigosa. As zonas seguras, com suas ruas iguais a todas as ruas das grandes metrópoles, marcadas pelo furor do consumo, com os arranha-céus em vidro, as seguradoras multinacionais, a banca, as lojas trendy da moda das cadeias internacionais ou sucedâneas destas, os restaurantes sushi com decorações em aço, madeira e vidro, toalhetes em papel reciclado ou em materiais clean e vigilantes à entrada. Estas zonas seguras da cidade distinguem-se também pela segurança obsessiva: seguranças privados, câmaras de vídeo, controle discreto da polícia. São zonas onde se chega em carros de vidros fumados, trancados, que depois alguém estaciona. O que aqui pode surpreender o visitante é algum vendedor de artesanato andino, ou essas mulheres que vendem chamadas ao minuto, com telemóveis amarrados à cintura por longas cadeias, que os alugam por minutos a alguns transeuntes que tenham ficado sem bateria ou sem dinheiro. Circundando isto, como uma moldura de um barroco pobre e de papel, há uma pobreza geracional, há paramilitares, um regime duro e uma violência sempre latente.
Apesar de ser noite de Verão na cidade, que fica a 2.940 metros de altitude, faz muito frio à noite. Leio: "El día que Florentino Ariza vio a Fermina Daza en el atrio de la catedral, encinta de seis meses y con pleno domínio de su nueva condición de mujer de mundo, tomó la determinación feroz de ganar nombre y fortuna para merecerla." de El amor en los tiempos de cólera, de Gabriel García Marquez.
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