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Literatura febril e paulista

O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli (S. Paulo, 1964), é uma obra que parece resultar de uma atitude de escrita automática, sem qualquer instância intermediária que a filtre, componha ou exercite. E, contudo, não é verdade. Esta ilusão estilística provém de um grande treino anterior do escritor, autor de várias obras de relevo de banda desenhada ou, como se diz no Brasil, de livros de quadrinhos. As frases são curtas, sincopadas, marcadas pelo recurso a onomatopeias e onde a função pragmática da linguagem é uma constante. O próprio aspecto gráfico das páginas evoca esse universo da literatura gráfica característico da BD. O Cheiro do Ralo relata o quotidiano do dono e único empregado de balcão de uma loja de penhores num universo urbano, cujos clientes são as figuras dos aflitos que a procuram pelas razões mais diversas. Como particularidade, esta loja tem um ralo (pia) entupido de onde sai um odor nauseabundo, que se intensifica sempre que as situações de tensão vividas pelo protagonista mais evidentes se tornam. É excelente esta metáfora urbana da condição de vida de um abandonado/homem só, cuja rotina diária se faz entre a mal-cheirosa loja, um quiosque de comida rápida e a sua casa, onde adormece fazendo zapping defronte da televisão. O insólito desta narrativa, escrita num ritmo avassalador, possessivo e febril, passa por uma ironia sofisticada, onde a evocação de obras maiores da literatura serve como inserts e os trechos sobre as fantasias sexuais são da autoria de “insuspeitas” personagens. O Cheiro do Ralo – adaptado ao cinema em 2006 - é um dos títulos interessantes da nova literatura brasileira e paulista.
Editora Devir Livraria, S. Paulo, 2002,
Do autor podem ser lidas várias obras de BD, uma das quais – O Rei do Ponto – foi premiada no 11º Festival de BD da Amadora
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