Logótipo Próximo Futuro

A última edição do Próximo Futuro, no Diário de Notícias

Fim do Próximo Futuro: "Queremos sempre algo que não existe"

Gulbenkian. Onze dias a pensar a condição humana através das práticas artísticas fecham a programação de António Pinto Ribeiro

"Aos poetas e aos accionistas também ocorrerá que estão a mexer na substância do mundo e na condição dos homens como ninguém o terá feito antes ou pelo menos da sua exata maneira" As palavras são de Ruy Duarte de Carvalho (1941- 2010), incessante fazedor de uma "teoria pessoal dos horizontes onde cabe tudo" que Manuel Wiborg ilumina em Vou Lá Visitar Pastores, pela segunda vez, agora incluindo textos de "Mensagens de Swakopmund" (missivas publicadas na revista Granta). "Homenageio o Ruy que está no fim da sua vida e pensa em si próprio, finalmente, quando antes pensava no Outro", diz o encenador. Antes de ser uma obra de definição esquiva do pensador, poeta, regente agrícola, cineasta e filósofo nascido em Santarém e feito angolano - como sucede a várias obras dele, há quem aponha na prateleira da antropologia, outros da literatura, outros dos livros a nunca perder de vista- e antes também do programador António Pinto Ribeiro a ter proposto a Manuel Wiborg como matéria-prima de uma peça-conferência a encenar e apresentar na Culturgest em 2004, Vou Lá Visitar Pastores foi um caderno de iniciação, cassetes gravadas, desenhos, longo mapa traçado pelo escritor para um companheiro de viagem, jornalista, que nunca chegou a aparecer para conhecer essa Angola outra, acabando depois por se tornar uma "exploração epistolar de um percurso angolano em território Kuvale" (como consta do título original publicado pela Cotovia em 1999).

Pistas, uma geografia sentimental do espaço e do tempo, um olhar sobre o outro que é uma maneira de nos vermos a nós próprios, Vou Lá Visitar Pastores é uma espécie de obra-mundo perfeitamente adequada ao fecho em aberto de uma história chamada Próximo Futuro que António Pinto Ribeiro programou na Fundação Calouste Gulbenkian desde 2009 e que agora termina - o programador demitiu-se em abril em desacordo com "a orientação programática da fundação" (declarou à Lusa, na altura). É uma cartografia para o amanhã que acaba (não acabando) com um programa fortíssimo que interpela o aqui e agora através das várias práticas artísticas e, ao mesmo tempo, celebra os 40 anos de independência de Angola. Muxima, o filme de Alfredo Jaar cujo título significa coração em kimbundu, arranca a programação de cinema esta tarde na Casa Arquivo - instalada no jardim e construída com as memórias das edições passadas -, amanhã chega Barcearia, diaporamas de João Dongo e António Júlio Duarte sobre as lojas que têm de tudo um pouco no Mindelo, e a fechar o ciclo há de mostrar-se Um olho para Ver, Outro para Sentir, curtas de Madalena Miranda, Miguel Coelho, Rita Forjaz e Susana Marques que regressam a África, cada um à sua maneira. O mesmo olhar fortemente político e humano impregna o concerto de abertura, logo à noite, no Grande Auditório da FCG. Em OCP: Espírito radical!, um espetáculo concebido por Pedro Carneiro e Pinto Ribeiro, a Orquestra de Câmara Portuguesa interpreta Ohko, de Jannis Xenakis (emigrante grego nascido na Roménia que a escreveu em França para instrumentos africanos), e Workers Union, de Louis Andriessen. O espetáculo convida os espectadores a participarem na leitura, ao vivo, de textos de Amílcar Cabral e Frantz Fanon, numa celebração do exemplo que Pedro Carneiro evoca no programa: "A música tem sido para mim uma extraordinária viagem e um exemplo de democracia e ética. No momento da sua prática todos os músicos em palco são iguais, o seu valor individual é apreciado em função das suas qualidades morais: o compromisso, a preparação, a presença de espírito, a integridade, ética e inteligência com que se exprimem."

 O grande teatro do mundo e o outro que somos nós


As dramaturgias que fecham o Próximo Futuro apontam para lá de qualquer fim, para uma geografia que transcende fronteiras. São visões da humanidade a fazer a matéria do teatro que vem do Chile ou da Grécia e que traz para o nosso aqui e agora a Argentina ou Angola. Além de Vou Lá Visitar Pastores (Ruy Duarte de Carvalho por Manuel Wiborg, de 6 a 8 no Anfiteatro ao Ar Livre da FCG), há ElLocoy La Camisa (de 5 a 7 no Teatro Aberto) , peça referência do teatro independente argentino que inclui os espectadores no espaço da representação para falar de loucura e outras normalidades. "Uma família esconde o seu louco de todas as formas possíveis. Esconde-o de fora e de dentro", escreve o encenador Nelson Valente em modo de apresentação deste trabalho da Companía Banfield Teatro Ensamble, que esteve cinco temporadas consecutivas em cena em Buenos Aires, além de rodar comloas - pelos festivais internacionais.

Do Chile chega De papel e Chiflón, El Silencio del Carbón, uma narrativa capaz de falar a diferentes públicos (e por isso programada nas noites de 9 a 11 no Grande Auditório e, para os mais miúdos, nas tardes de 12 e 13 na Casa Arquivo) sem dizer uma palavra. Releitura da história de um jovem mineiro obrigado a trabalhar numa das mais perigosas regiões do mundo (obra do autor chileno Baldomero Iillo), transmutada pela Companhia Silencio Blanco em marionetas de papel, a peça conta o heroísmo diário dos esquecidos do mundo. A"qualidade implacável da vida" e a "crueza do amor" são a matéria feroz de que é feitayl Circularidade do Quadrado, do dramaturgo e ativo pensador grego Dimitris Dimitriadis, levada ao palco por Dimitris Karantzas, revelação da encenação grega com talento abençoado em Avignon.

A peça, encenada "como uma eterna canção de expectativa e desilusão", afirma pela boca de uma das personagens: "Queremos sempre algo que não existe. Deitamos as nossas vidas fora assim, mas não há outra maneira de as tornar nossas." Evidências a confirmar nos derradeiros dias do Próximo Futuro (14 e 15 no Grande Auditório), na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

MARIA JOÃO GUARDÃO, Diário de Notícias, 4 de Setembro de 2015