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A pergunta não é: que pode a literatura? Mas sim: que podem os literatos?

Publicado16 Jan 2010

Etiquetas chile literatura roberto bolaño

A três páginas, apenas a três páginas, do final da novela Noturno do Chile, o narrador afirma: "É assim que se faz literatura no Chile, mas não só no Chile, também na Argentina e no México, na Guatemala e no Uruguai, e na Espanha, na França e na Alemanha, e na verde Inglaterra, e na alegre Itália. Assim se faz literatura". É demolidora esta afirmação. Ela encerra a história ancestral da relação de comprometimento de muitos intelectuais, escritores, artistas, com o despotismo, o fascismo, a repressão. Neste livro, esta relação de comprometimento tem o seu contexto no Chile da ditadura de Pinochet e da junta militar, mas ela alastra-se à história dos intelectuais ocidentais. Um jovem padre de sólida formação intelectual clássica, crítico literário, poeta, professor, que leu todos os cânones da literatura e da filosofia ocidental, que viajou pela Europa herdeira do renascimento, do iluminismo, dos modernismos, vê-se, em determinada altura, constrangido a dar aulas de Marxismo a Pinochet e à Junta Militar. Entre o absurdo da situação e o despudor com que a aceita, há todo um mundo de acontecimentos de que permanentemente se alheia: "... Lafourcade publicou palomita blanca, fiz uma boa critica, quase uma glosa triunfal, embora no fundo eu soubesse que era um romancinho que não valia nada, organizou-se a primeira marcha das panelas contra Allende, (...) houve atentados, li Tucídides, as longas guerras de Tucídides (...), também reli Demóstenes, Menandro, Aristóteles e Platão (que sempre é proveitoso), houve greves, (...) depois mataram o ajudante de ordens naval de Allende, houve distúrbios, (...) depois veio o golpe de estado, o levante, o pronunciemiente militar, bombardearam La Moneda, e, quando terminou o bombardeio, o presidente se suicidou e tudo acabou. Então eu fiquei quieto, com um dedo na página que estava lendo, e pensei: que paz." Acabará por beneficiar da sua situação de professor de Pinochet e depois envolver-se em tertúlias literárias numa casa que, se saberá depois, ser um lugar de interrogatório e de tortura da policia política da ditadura. Já velho, remomoriza toda a sua vida. O mais grave não é ter sido cúmplice de Pinochet, o mais grave, sabe-o bem, é ter fingido que a sua actuação não era política. Como hoje, aliás, a acontece a muitos outros intelectuais : "e depois se desencadeia a tormenta de merda", última frase do livro.
Noturno do Chile, de Roberto Bolaño (2000) tradução de Eduardo Brandão. SP: Companhia das Letras, 2004
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