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"O mundo tem de saber o que se passa"

Publicado2 Mar 2012

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Polícias xiitas sem armas, médicos detidos por prestarem assistência a feridos, um helicóptero que sobrevoa Manamá 24 horas por dia, unhas arrancadas e mãos queimadas com pontas de cigarros... Sousa Ribeiro, jornalista que viaja pelo mundo, andou à boleia no Bahrein, fotografou e escreveu sobre um país dividido.

- Conhece algum polícia que ande desarmado? 
A pergunta de Jaber, um polícia xiita, apanha-me de surpresa na manhã que desponta limpa e bonita. 
- Os polícias xiitas, todos sem excepção, receberam ordens para devolver as armas. 
Ao chegar ao templo Barbar, um conjunto de ruínas dos séculos II e III a.C., o homem com a farda verde-azeitona, sem cinto, desvia os olhos do motor do carro vermelho estacionado na terra esfarelada pelo sol e vem ao meu encontro.
- Ah, você já sabe... 
Mohamed, sempre sorridente, apenas se limita a confirmar a versão do companheiro, mas de uma forma que indicia um maior conformismo. Permite a minha errância por aquelas pedras cansadas da vida e volta a dedicar atenção à viatura. 
- Está a ver aqueles prédios ali ao fundo?
Um conjunto de edifícios, envolto numa espécie de bruma, ergue-se no horizonte, recortado contra o céu azul.
- Por que têm de ser todos propriedade do mesmo?
E depois, sempre de uma forma serena, sem alguma vez alterar o tom de voz, Jaber volta a perguntar:
- E aqueles terrenos, daquele lado, que são cultivados, por que têm de pertencer todos à mesma pessoa?
Eu caminho pela rua bordejada de casas e escuto os raros e fracos sons da manhã enquanto vou pousando o olhar nas paredes repletas de graffiti na aldeia de Al Maqsha. "Abaixo o Khalifa" e "Nós voltaremos" misturam-se com o rosto pintado a tinta vermelha e preta de Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezzbollah. Alguns foram pintados por cima mas as inscrições em inglês permanecem intactas, como se a censura soubesse de antemão que ninguém lhes prestaria atenção. 
- Tens de escrever sobre o que se está a passar no Bahrein. O mundo tem de saber qual é a verdadeira situação do país. Já mataram 53 pessoas e ainda ontem prenderam mais dois defensores dos direitos humanos, a juntar a tantos outros, brutalmente espancados, detidos e alguns deles a cumprirem penas de prisão perpétua.
O jovem Hassan, na irreverência própria dos seus 17 anos, faz-se acompanhar de três outros amigos e fala em voz alta até se conter por desconfiar da presença de um elemento da secreta dentro do autocarro que os leva desde Manamá a Muharraq. 
Mais a sul, em frente ao Museu do Petróleo, não muito longe da cidade de Awali, há um carro que pára para me dar boleia.
- O Governo dá uma imagem de democracia para o exterior que está longe de corresponder à realidade. Sou engenheiro mecânico e não tenho emprego. Por ser xiita, sou obrigado a obter um certificado e todo o processo é demorado. Não temos as mesmas oportunidades e a isso chama-se discriminação. Quero ir embora daqui, para a Europa ou para os Estados Unidos, porque os países do Golfo são todos iguais. 
Uns quilómetros mais à frente, Hussein devolve-me à minha solidão e, enquanto espero nova boleia, penso nas palavras de Ammar, proferidas, pouco antes, no interior da carrinha de caixa aberta, enquanto percorríamos um trecho da auto-estrada que liga Riffa a Durrat al-Bahrein, onde está a ser construída uma ponte que ligará o país ao Qatar. 
- Vê só a dimensão da fábrica que tens à tua direita, chama-se Alba e é uma das maiores do Golfo. Sou formado em tecnologia, bati-lhes à porta e disseram-me que, por agora, não tinham vagas. Como sou xiita, resta-me a alternativa de ser motorista. 
Quadro superior numa empresa, em Sitra, Radhi fala pausadamente. "O país tem uma população essencialmente jovem. Muitos não têm emprego e sentem-se envergonhados por terem de pedir um ou dois dinares (dois e quatro euros) aos pais todos os dias. Sendo xiitas, o acesso ao emprego é dificultado e nos últimos tempos, face aos acontecimentos, tem-se assistido a um elevado número de despedimentos entre os xiitas. Para agravar a situação, há muitos estrangeiros a trabalhar no país."
A carrinha pára na rotunda de Riffa e eu subo. É um antigo polícia, agora transformado em motorista de uma escola, nascido em Lahore, no Paquistão, quem me leva até Sitra. Do cruzamento até ao Yacht Club, a escassos quilómetros, é um sudanês que me conduz. Compro o bilhete de barco a uma jovem do Sri Lanka que tem como companheira de serviço uma filipina e, minutos mais tarde, a lancha sulca as águas prateadas, a caminho da ilha Dar, com um indiano de Kerala ao leme. 
O poder dos Al-Khalifa
País rico em petróleo, cuja descoberta, em 1932, coincidiu com o colapso do até então rentável negócio de pérolas, o Bahrein escancarou as portas aos imigrantes e, actualmente, a percentagem de mão-de-obra vinda do exterior ascende a quase 50 por cento. "Mesmo na polícia, a maior parte dos agentes são estrangeiros, provenientes do Paquistão, do Iémen, da Jordânia, da Arábia Saudita e dos Emirados. O Governo tem tentado passar a mensagem de que os xiitas são violentos e que odeiam os sunitas, o que não é verdade, porque somos irmãos. Queimam pneus, derramam óleo na estrada para atearem fogos, erguem barreiras e lançam pedras e cocktails molotov para expressarem a sua revolta face à agressividade revelada por polícias que os agridem no seu próprio país e que nem sequer são capazes de se expressar em árabe", observa Radhi, sempre com uma calma maternal.
- Eu vou enviar-te vídeos e fotos. Olha para esta. Não viste as notícias ontem, que davam conta de um morto? Eles disseram que se tratou de um acidente mas tu repara bem, o jipe a atropelar este homem. E olha para esta, para veres como eles forjam situações. Colocaram armas e uma bandeira do Hezzbollah na bagageira de um carro e prenderam o proprietário da viatura. O mundo tem de saber o que se passa no Bahrein, porque o mundo está a esquecer-se de nós.
O jovem Hassan, mais exaltado do que nunca, coloca-me nas mãos o telemóvel para que eu analise o conteúdo com os meus próprios olhos. Através da janela do autocarro, vejo a lua subindo no céu. 
No dia anterior, as fotos de homens desaparecidos e vítimas de tortura, afixadas nos muros de cimento em Al Maqsha, a menos de um quilómetro onde os portugueses construíram um forte no século XVI, entraram-me pelos olhos com a mesma intensidade com que agora ouço, a caminho de Manamá, Radhi. "Temos conhecimento de pelo menos quatro mortos dentro das prisões. Agora mesmo vou visitar um amigo que esteve detido durante 45 dias. Nem faz ideia dos horrores que são cometidos. Primeiro, penduram-nos no tecto durante três dias. Quando, finalmente, os colocam no chão, as pernas não aguentam, simplesmente caem para o lado e logo são pontapeados. Depois, convidam-nos a assinar uma nota de culpa e, se não o fazem, voltam a ficar suspensos pelos braços durante mais três dias. Perante nova recusa, enfiam-lhes um pano na cabeça e batem-lhes até que o sangue lhes salte pelos ouvidos. Queimam-lhes as mãos com pontas de cigarros e arrancam-lhes as unhas. Nada do que lhe conto é ficção, o meu amigo conheceu essa realidade e continuou a dizer que preferia morrer do que assinar qualquer documento. Agora está em casa, privado do passaporte, à espera do julgamento. No mínimo, apanhará dois ou três anos de cadeia." 
A família Al-Khalifa chegou ao Bahrein em meados do século XVIII, expulsando os persas do território em 1782 e aí se mantendo até ser obrigada ao exílio durante a invasão omani. Em 1820, regressou para não mais partir, contando, durante o século XIX, com o apoio dos ingleses, desejosos de terem alguém de confiança que se opusesse à pirataria reinante na zona e que lhes garantisse, ao mesmo tempo, segurança nas rotas comerciais com a Índia. Já neste século, a riqueza dos Al-Khalifa ia aumentando à medida que o petróleo jorrava dos poços, proporcionando-lhes uma fortuna que, forçosamente, teria de provocar natural descontentamento entre parte da população que conhece o significado da palavra provação. "Havia de ver como vivem algumas pessoas nas aldeias e nos subúrbios de Manamá. Você até chora", continua Radhi, que agora conduz o carro pelas ruas da capital impregnadas de jipes da polícia, enquanto um helicóptero sobrevoa a cidade. "Já pensou quanto gasta o Governo num helicóptero para vigiar Manamá 24 horas por dia? Todos nós, sem excepção, xiitas ou sunitas, temos os nossos direitos. Tudo o que nós desejamos é igualdade e mais liberdade. Não lhe parecem aspirações legítimas?", questiona Radhi ao mesmo tempo que abana a cabeça em sinal de reprovação face ao que vê em cada cruzamento ou em cada rotunda. 
Liberdade
Os primeiros sinais de convulsão surgiram na última década do século passado e resultaram em esporádicas detenções, agravando-se em 1994, altura em que o emir se recusou a aceitar uma petição exigindo mais democracia. As manifestações e os protestos continuaram, em maior ou menor escala, culminando com um atentado, em 1996, que destruiu parcialmente o Hotel Diplomat, actualmente o Ritz-Carlton Bahrein. Em Março de 1999, com a morte do xeque Isa Bin Sulman al-Khalifa, a gestão do país passou para as mãos do filho, xeque Hamad bin Isa al-Khalifa, que logo promoveu eleições parlamentares e municipais e instituiu uma monarquia constitucional. Quase em simultâneo, ordenou a libertação dos presos políticos, permitiu o regresso dos dissidentes no exílio e declarou igualdade de direitos para todos os cidadãos nacionais. "O nosso rei é bom para o povo. Não é dele que temos razões de queixa", releva Radhi, um xiita. "Não é nada. Ele apoia os terroristas, a Al-Qaeda, como apoia muitos dos ditadores, entre eles o presidente do Iémen, Ali Abdullah Saleh", contradiz Hassan, sentado na última fila do autocarro que está prestes a chegar à derradeira paragem, na ilha de Muharraq.
Com um parlamento dominado pelo Al-Wefaq, o partido xiita mais representativo, o principal motivo dos protestos parece ser, pelo menos aos olhos da maior parte, o primeiro-ministro, xeque Khalifa bin Sulman al-Khalifa, sunita da linha dura, no Governo desde 1971. "Queremos eleições parlamentares livres mas temos a noção de que tudo leva o seu tempo e que ainda não estamos preparados para uma democracia como as que conhecem os países europeus ou os Estados Unidos", enfatiza Radhi.
Apanho mais uma boleia, agora em Zallaq, vila cem por cento sunita, mesmo em frente à casa do primeiro-ministro, cuja entrada é vigiada por dois polícias. Passo fugazmente pela praia de Al-Jazayer e, uma vez mais à boleia, ouço as lamentações de Abdul, socorrista e sunita. "A nossa vida é casa, trabalho e mesquita. E tem de ser um pouco mais. Precisamos de liberdade." Sentado no banco de trás, Asheem, também sunita, é menos pragmático. "Isto é uma merda de país. Quero ir embora para a Arábia Saudita." Abdul contrapõe: "Mas na Arábia Saudita vais encontrar os mesmos problemas." Radhi também o sabe. "A Arábia Saudita enviou mais de mil polícias e umas dezenas de carros blindados para ajudar o Bahrein depois dos tumultos de Fevereiro e Março. Se o Governo do Bahrein cair, eles sabem que serão os próximos e, por isso, tentam a todo o custo evitar uma mudança política." 
Ao princípio da manhã do dia seguinte, passo por A"Ali, uma vila famosa pela cerâmica. As paredes das casas e os muros estão cheias de graffiti, apelando à retirada da família Al-Khalifa do poder e pedindo a libertação dos prisioneiros políticos. Moldando potes de barro e ignorando o que se passa, dois paquistaneses e um indiano falam da sua vida e dos ordenados que garantem ao fim do mês, mediante 12 horas de trabalho diário - entre 160 e 240 euros. Entro na loja anexa à fábrica para comprar uma recordação e um homem, xiita, mostra-me uma fotografia num telemóvel.
- Vê só, um bebé com cinco dias. Inalou gás lacrimogéneo e a mãe não conseguiu chegar a tempo de o salvar ao hospital, porque as ruas estavam todas bloqueadas pela polícia. 
Relembro, por momentos, frases dispersas de Radhi. "Muitos médicos que prestaram assistência aos feridos foram detidos. Os hospitais estão cheios de militares. Eu prefiro pagar e deslocar-me mais longe do que correr riscos." 
Gás lacrimogéneo
Regresso a Manamá e os jipes da polícia estendem-se ao longo da auto-estrada King Faisal. Há arame farpado por todo o lado, para evitar que os manifestantes se aproximem de uma das principais vias de acesso à capital. Tanques e jipes estão estrategicamente colocados nas ruas paralelas, próximos das grandes superfícies comerciais. Para se chegar a um dos mais concorridos, perto da Rotunda da Pérola, a Praça Tahir dos revoltosos do Bahrein, caminhar ao longo da auto-estrada é a única alternativa. Um enorme placard mostra a figura suprema e omnipresente do xeque Hamad bin Isa al-Khalifa com a mão direita levantada, o que poderia ser entendido como uma saudação, não fosse dar-se o caso de, na mesma fotografia, estarem os tanques do Exército para os quais o rei olha de lado. 
Uma ameaça que vai ganhando contornos bem definidos. Naquela noite, na varanda do meu quarto, num quinto andar de um hotel, sinto os olhos a arder e dificuldade em respirar. Desço à recepção e noto uma tensão que não é habitual e uma presença humana de todo invulgar. As ruas estão desertas e confirma-se que o cheiro do gás lacrimogéneo lançado sobre os manifestantes chega ao centro da cidade. 
- Tem uma chamada para si - diz-me a recepcionista.
Do outro lado da linha, está Ahmed, um segurança que conhecera na véspera e que prometera visitar-me no hotel para me levar a ver "um filme ao vivo", tendo como protagonistas polícias e manifestantes. 
- A situação está feia e perigosa. Cortaram a estrada que liga Manama a Budaiya e sinto o cheiro a gás. As notícias dão conta de um morto. Tem cuidado.
Registei as palavras mas nunca me senti inseguro no Bahrein ao longo de uma semana, quase sempre à boleia. Caminhando na auto-estrada, no dia seguinte, um polícia paquistanês veio ao meu encontro para me oferecer uma garrafa de água. Agora, à hora do crepúsculo, viajo de táxi entre Muharraq e o aeroporto. É o dia nacional, as bandeiras agitam-se no ar e o som das buzinas ecoa por todo o lado. Mas só os sunitas festejam porque os xiitas evocam, nesse mesmo dia, os mártires de um tempo tumultuoso. E é então que me vem à memória a imagem de dois polícias que me pediram para tirar uma fotografia, ajoelhados em frente a um coração feito por eles com tampas brancas e vermelhas (as cores da bandeira do Bahrein) de garrafas. Eram sunitas e estavam armados. Jaber, um pouco mais longe, xiita, também deseja a paz, tanto como igualdade de direitos, mais oportunidades, menos discriminação:
- Conhece algum polícia que ande desarmado?

in Público, 2.3.2012

8 Realizadoras Árabes - May Ying Welsh

Publicado29 Fev 2012

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 Bahrain: Shouting in the Dark, May Ying Welsh, 2011

Um país esquecido pelo mundo, com a população à mercê do seu ditador: Bahrain: Shouting in the Dark revela a sitação dramática que a sociedade do Barhein enfrenta. A tentativa popular de ser uma das bem sucedidas histórias da Primavera Árabe diante da atitude intransigente e implacável dos seus opressores.

Documentário produzido para o canal de televisão Al Jazeera English acerca das sublevações e protestos no Bahrein, em 2011, transmitido a 4 de Agosto do mesmo ano, inclui imagens gravadas durante as manifestações reprimidas pelas forças de segurança, entrevistas activistas e populares.

May Ying Welsh, jornalista norte-americana, trabalha para a estação de televisão Al Jazeera.