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Sobre os chefs

Publicado20 Dez 2013

Josefa de Óbidos, "Uma natureza morta com doces e barros" (1676), Biblioteca de Santarém

Uma tela de Josefa de Óbidos (1630-1684) cria mais apetite, sofistica mais o gosto e revela mais voluptuosidade do que todos os programas de culinária que as televisões exibem. Por exemplo, Uma natureza morta com doces e barros, de 1676, que está exposta na Biblioteca de Santarém. À boa maneira dos bodegón, esta composição meridional, quente, com grande riqueza plástica e cromática, apresenta uma combinação de doces e utensílios de barro de cozinha. O seu propósito era decorativo, embora houvesse uma simbologia cristã (e portanto programática) nessas obras que decoravam as casas nobres da época. A belíssima descrição de Gustavo de Matos Sequeira — desta e de outra pintura, Natureza morta com flores — diz que são “quadros de alto sentido decorativo, tão ricos de cor, dominadores pela opulência da composição (…), [dando-nos] com feminilidade conventual uma lição do que era a confeitura fria do seu tempo, empapelada de rendas, acondicionada em condessas de verga fina, resguardada em caixas pintadas (…) num jeito de glória teatral às virtudes domésticas da culinária doce”. Esta panóplia de sugestões sensoriais é sugerida pelos folares pascais ali pintados, pelos ovos cozidos, pela tigela de doce de chila, os pães de ló, as queijadas, as hóstias brancas e vermelhas enformando os ovos de Aveiro e outros doces locais, as coberturas gostosas e amanteigadas rodeadas pela delicadeza das pétalas e resguardadas pelo pote de barro que impõe a frescura da água a tanta doçaria.

Mesmo admitindo que a pátina da pintura não se introduz apenas entre a pintura e os nossos mecanismos de recepção, mas também entre o tempo em que aquela foi executada e o nosso tempo — o que pode provocar algum distanciamento nos mecanismos que despertam o nosso paladar, o olfacto, o tacto, o cheiro —, esta pintura de Josefa de Óbidos posiciona-se evidentemente do lado da exaltação da comida, do lado prazeroso da culinária como exercício sábio de encontro entre a Natureza e o Homem. Há vários aspectos etnográficos documentados na natureza morta de Josefa de Óbidos; os alimentos representados fazem parte das colheitas típicas de cada estação. Assim, quando um fruto exótico aparece, essa sua representação honra um grande acontecimento. Não é banal.

Da mesma forma, mas a alguns séculos de distância desse tempo, encontramos o mesmo tipo de finura, de delicadeza, de respeito pela natureza e de apreço dos condimentos num filme como Tampopo, de Jûzô Itami — todo ele dedicado à manufactura e à ingestão das massas japonesas.

Contrária a esta delicadeza está a produção, agora maciça, de programas de entretenimento televisivo anunciados como sendo de “gastronomia” e “culinária”. Na verdade, são quase todos fundamentalmente “cabides publicitários”, ou seja, fontes de receita monetária para essas mesmas televisões. Cada episódio apresenta doses notáveis de publicidade, venha ela de forma óbvia ou encapotada: electrodomésticos, produtos de culinária, supermercados, utensílios de cozinha. Além disso, estes programas promovem também os seus chefs e estes, em regra, promovem-se a si próprios enquanto proprietários de restaurantes — restaurantes esses que, por sua vez, promovem marcas associadas. São mecanismos de lucro fácil.

Como se não bastasse, acrescenta-se a este tipo de programa um outro que vem sob a forma de concurso de talento. Aí, celebridades televisivas — cujo único mérito parece ser o de aparecerem na televisão — apresentam aquilo que são verdadeiros rituais de humilhação para os candidatos, em que se incute um espírito de competição feroz e um gosto por pratos chamados “de fusão”. Ora, seja na música, seja na culinária, a fusão é a fabricação de um híbrido e corresponde à expectativa da classe média globalizada. Na fusão, os elementos perdem a sua singularidade, a sua beleza individual, o seu gosto único, e tornam-se tão só produtos para consumo imediato.

Estes programas — e, assim, os seus protagonistas — não respeitam os ciclos das estações com a sua oferta de produtos específicos e próprios da época. Pelo contrário, estimulam o consumo fora da época com tudo o que isso envolve em termos de alteração do gosto, da textura, da qualidade dos alimentos — e para não mencionar a violência ambiental que isso acarreta. Em suma: ali ignora-se ou contraria-se a ideia de haver um momento especial, concreto, sazonal, festivo para a fruição de determinado fruto ou vegetal, de determinada carne mais ou menos exótica. Ali tudo é apenas mais um ingrediente no meio de outros, independentemente da época e da proveniência. Desconsideram-se a origem geográfica, a sasonalidade. Ora, isto não é inocente. Veja-se, por exemplo, como a imposição de pão branco importado para base da alimentação em muitos países africanos os obrigou a abandonar as farinhas locais, e como isso lhes custa caro.

Depois, se se reparar na forma como os auto-proclamados chefs lidam com os alimentos, verificar-se-á uma quase generalizada falta de delicadeza. Os alimentos são manuseados muitas vezes com pressa, quase bruscamente, e isso diz bem do divórcio que existe entre aqueles corpos e aqueles alimentos. No filme Como Água para Chocolate há uma cena em que a filha deixa cair uma lágrima na massa e a mãe pede-lhe que deixe de chorar pois assim deslaça a massa. Esta cena mostra uma ligação animista entre o sofrimento e a comida, entre alimentação e sentimento. Justamente o que não existe no frenesim desses programas televisivos. Destituídos de alma, parecem antes estimular a bulimia, o consumo imparável.

Há espectáculo nestes programas, mas nem por isso são mais apelativos. Porque, como é sabido, um espectáculo pode ser mau e, no caso, não é sequer comparável à grandeza, à teatralidade que a culinária e os alimentos merecem — e que lhes é dada, por exemplo, nas naturezas mortas de Josefa de Óbidos, com as suas flores, os seus peixes, os seus cardos, as suas carnes, os seus pães — e com tempo.

António Pinto Ribeiro

Crónica publicada no suplemento Ípsilon do jornal Público a 20 de Dezembro de 2013.