Poesia negra
Publicado7 Abr 2014
Poesia negra
A violência e as fraturas sociais da África Austral nas imagens de um fotógrafo contemporâneo
A criação do programa "Próximo Futuro" pela Fundação Calouste Gulbenkian — e, nomeadamente, a inclusão sistemática nele dos Encontros de Bamako de Fotografia — teve o condão de ir tornando visível na capital portuguesa o essencial da fotografia africana contemporânea. É nesse âmbito, e depois da presença nos encontros da capital do Mali, que o fotógrafo sul-africano Pieter Hugo (n. Joanesburgo, 1976) apresenta em Lisboa a sua primeira exposição antológica.
Nomeado para o Deutsche Börse Photography em 2012, Hugo tem uma carreira de pouco mais de dez anos, ainda que a quantidade, qualidade e diversidade da sua produção justifiquem plenamente esta recolha. Entre as várias séries apresentadas encontra-se "Hyena & Other Men", o seu trabalho mais conhecido, um conjunto de imagens feitas entre os domadores de feras nigerianos que coloca questões relacionadas com o poder e a submissão. Esse é um tema transversal nestas imagens, mas o trabalho de Hugo abrange um espectro mais largo de interesses, muitos dos quais rondam a questão da identidade, um assunto imerso em dramatismo na África do Sul pós-apartheid.
Veja-se a este propósito a série "Km", realizada nos últimos oito anos e na qual Hugo surpreende uma paisagem étnica, social e economicamente contraditória, ou "There Is a Place in Hell for Me and My Friends", na qual mostra os seus amigos em imagens onde os tons surgem exageradamente escurecidos, deixando assim claro que somos todos coloridos.
A desequilibrada vida da África Austral e os seus bloqueios são, aliás, presenças constantes nos trabalhos de Hugo, embora o seu olhar sobre ela oscile com frequência entre o documental e o alegórico, apesar de sofrerem sempre uma leitura política inevitável, como diante da série "Permanent Error", captada numa lixeira do Gana onde adolescentes apanham lixo eletrónico e onde a normalidade é a própria devastação. Ainda que Hugo contorne o exótico, há nas suas imagens uma estranheza e uma força desconcertante na qual cabem, nunca suavizadas, a violência, o sobrenatural e a morte.
A série "Nollywood", captada na Nigéria no seio de uma das maiores indústrias cinematográficas do mundo, é um bom exemplo de como Hugo usa a fotografia para estabelecer um olhar negociado — simultaneamente factual e ficcional — com o mundo que o rodeia, usando a teatralidade e a fantasia para penetrar o imaginário da África Austral contemporânea.
Hugo olha a realidade dura da África do Sul e dos seus vizinhos capturando imagens que são sempre mais poderosas do que a soma dos seus elementos burlescos, trágicos ou anedóticos. Consciente de todos os traumas e violências identitárias, o fotógrafo não se deixa circunscrever pela retórica corrente sobre elas. As suas imagens não são nunca ilustrações dóceis. Essa é a sua força decisiva.
Crítica de Celso Martins publicada no suplemento "Atual" do jornal "Expresso" a 5 de Abril de 2014.