O Brasil "aos quadradinhos"
Publicado4 Jan 2015
Cachalote, de Daniel Galera e Rafael Coutinho, e Copacabana, de Lobo e Odyr Bernardi, publicadas em Portugal pela Polvo, chegaram do Brasil e são o destaque de um artigo de José Marmeleira no Jornal Público, que faz a análise da ebulição de um género naquele país, um renascimento dos "quadradinhos".
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A par deste reconhecimento simbólico e institucional, eis o que de facto importa: a qualidade das obras, a diversidade de estilos e temáticas, a invenção gráfica. A relação com o real. Copacabananasceu dos passeios nocturnos de Lobo pelas calçadas, os bares e as boates do bairro de Copacabana, entre putas, traficantes e travestis. É uma banda desenhada a carvão e a tinta-da-china com o traço nervoso e redondo de Odyr, que avança na noite empurrada pelo trabalho e pelos sonhos de Diana, mulata e prostituta. Ficção e real, imaginação e trabalho de campo fundem-se e dão conta de uma cidade em transformação. Já Cachalote, num desenho fino e frágil como a escrita Daniel Galera, lança cinco histórias paralelas que nunca se ligam. Preenchem-nas os “combates” e as emoções de homens e mulheres (um estrela do cinema chinês, um casal, um escultor, um escritor e a sua ex-mulher, entre outras personagens) em geografias anónimas ou diversas (São Paulo, Europa), com o realismo a acolher o fantástico. A estes livros podiam juntar-se Risco e Cumbe, de Marcelo D’Salete, Morro da Favela, de André Diniz (também traduzido em francês e editado pela Polvo), Promessas de amor a desconhecidos enquanto espero o fim do mundo, de Pedro Franz, ou Tungsténio, de Marcello Quintanilha (publicado em Espanha). Razão para que se faça a pergunta: o que está a acontecer no panorama brasileiro dos quadrinhos?
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Vingou uma pluralidade de opções de género e de estilo. Os desenhos de Rafael Coutinho inspiram-se na banda desenhada europeia, o traço de Odyr recorda o do americano David Mazzuchelli. O realismo duro das histórias de Marcelo D’Salete contrasta com o teatro de sombras cartoonesco das personagens André Diniz. Se há um ponto de vista que aflora a maioria destas BD, é aquele que se projecta sobre a vida dos brasileiros, na Avenida Atlântica, nas favelas do Rio ou nos subúrbios de São Paulo. Neste âmbito, o trabalho de Marcelo d’ Salete é dos que mais se destacam, reivindicando na banda desenhada um lugar para as narrativas da história negra no Brasil. “Quando comecei a ler quadrinhos, a ausência de histórias tratando a cultura negra não era impensada em nossa sociedade. Resultou de uma estratégia de apagamento. A elite brasileira sempre quis apresentar o Brasil como uma nação branca de herança europeia, mas ele é um país de maioria negra, com grande desigualdade social e altas taxas de homicídio, principalmente de jovens negros. Essa história, essa desigualdade, tem de estar nos quadrinhos.” Cumbe (2014) e Risco (2014) inscrevem-na, reflectindo, respectivamente, sobre a resistência dos negros escravizados no século XVII e a violência policial no século XXI.
Mas não se fale de movimentos, de uma banda desenhada genuinamente brasileira. Nenhum destes livros é porta-voz do que quer que seja. Só uma coisa é certa, nas palavras de Rafael Coutinho: “O Brasil está genuinamente interessado em quadrinhos e fazia muito tempo que não estava."
Das ruas de São Paulo a Copacabana, o Brasil desenha-se em quadradinhos