Mandela - o adeus difícil
Publicado15 Dez 2013
Hoje, 15 de dezembro de 2013, tem lugar o funeral de Nelson Rolihlahla Mandela. Desde a sua morte a 5 de dezembro, o mundo replicou imagens e textos e editoriais foram escritos em todas as línguas do mundo. Homenagens oficiais e não oficiais ocorreram em múltiplos cantos do mundo. Homens e mulheres importantes e não importantes disseram o seu nome - Mandela, Madiba ou Tata – consoante o nível de carinho e africanidade. As páginas das redes sociais foram inundadas de citações de Mandela. Repetidas e novas. Depois, o mundo, que não aguenta por muito tempo momentos de reflexão, começou a distrair-se e, em vez de Mandela, as notícias passaram a ser sobre o selfie do Obama, a cara da Michelle Obama, o intérprete que não era intérprete… No canto luso, a atenção foi concedida ao passado do Cavaco Silva e o voto na ONU. O beijo de Winie Mandela e Graça Machel foi um must para muitos.
Mas hoje é o funeral. Eu não gosto de funerais. São um adeus final… De tudo o que li nestes últimos dias, um dos textos em particular tocou-me. Dizia o autor: “Porque é tão difícil dizer adeus a Mandela?”. E o artigo argumentava que é tão difícil porque, com ele, vai a nossa parte boa. Fiquei a pensar nesta frase. É verdade! Sim, os 27 anos de prisão e a sua capacidade de perdão fizeram o nosso Mandela. O seu desapego ao poder fez o nosso Mandela, mas, na verdade, custa-nos deixar partir o homem Mandela mais que o chefe de estado ou o ex-prisioneiro. Custa-nos deixar partir o homem do sorriso natural com as suas camisas coloridas. O homem que não tinha medo de dançar e cantar em público. O homem que rompia a segurança para cumprimentar as pessoas simples. O nosso luto é por termos ficado órfãos de um líder humano. Sim, que ele próprio dizia e insistia que não era santo. Ficámos sem o homem que amou várias mulheres e que voltou a casar aos 80 anos. Sem o homem que mostrava emoção sem medo. Ele foi prisioneiro entre paredes reais, mas muitos de nós somos prisioneiros de paredes invisíveis. Na prisão e fora dela, Mandela mostrou-nos o que é ser um homem livre.
Políticos, quer em democracias quer em não-democracias, são prisioneiros dos seus partidos ou de interesses. Há presidentes que são prisioneiros da sua ambição e que teimam em se manter no poder. Muitos partidos são prisioneiros do seu passado heróico ou menos heróico, ou são prisioneiros da incapacidade de construir ou de partilhar propostas para futuro. E nós, as pessoas, somos prisioneiros de preconceitos, de crises, dos nossos problemas, da competição, do desemprego, do emprego. Somos educados a não mostrar emoções, a não rir à gargalhada, a não chorar. A não beijar na rua. Mandela mostrou-nos que se pode ser livre de tudo isto.
Não queremos dizer adeus porque não queremos ser deixados aos políticos sisudos, sérios, vestidos nos seus fatos cinzentos. Distantes de nós. Não queremos dizer adeus porque precisamos de heróis da vida real. Os dos filmes não nos bastam. Precisamos de heróis em África onde alguns presidentes se arrastam no poder como deuses e varrem quem os desafia. Precisamos, na Europa, de líderes que nos inspirem e não “desinspirem” com a sua auto-importância encapotada em burocracia e poder virtual de mercados incompreensíveis e invisíveis.
Mandela insistia na ideia de que não era santo para nos tentar libertar. Se o santificarmos, ficamos impotentes. Fica um Mandela que nos é inatingível. Ele queria que acreditássemos na “banalidade do bem” usando o conceito de Hannah Arendt para o mal, quando escreveu que o que era assustador no Nazismo é que foi feito por homens comuns. O pior dos males era cometido não por personagens únicas e más, mas por pessoas como nós. Roubo o conceito de Arendt para aplicar a Mandela e a nós. Esse é o maior legado do Mandela: todos podemos ser bons.
Mandela. E agora?
Nos dias pós a sua morte, a imprensa perguntava “E agora? O que vai ser da África do Sul?”. Respondi como estudiosa da política africana a alguns jornalistas e dizia “nada”. Alguns ficaram desapontados. “Nada?!”. Nada! África do Sul não foi feita por um homem. A transição do horrendo sistema do apartheid foi feita por muita gente, muitos famosos mas também pelos milhares e milhares de anónimos. Em 2014 haverá eleições na África do Sul e os desafios económico-sociais e políticos estão lá. Como têm estado. Se a morte do Mandela tem alguma consequência e impacte, esse só pode ser positivo e não catastrófico. A morte do Mandela voltou a lembrar aos sul-africanos que são uma grande nação e que o são porque são um puzzle de identidades, de raças, de religiões. Os sul-africanos criaram o nome Nação Arco-Íris para si próprios e continuarão a sê-lo. Mas, tal como os céus verdadeiros, terão, como têm tido, nuvens. Nos últimos anos, o céu político sul-africano tem tido algumas nuvens: as mortes das minas da Marikana, a tentativa de restrição de liberdade da imprensa, alguns escândalos, como os casos com a multimilionária e polémica família Gupta, próxima do presidente Zuma (para além das suspeitas de corrupção, é sabido que a família Gupta usou uma base área militar para aterragem de um avião civil para um casamento de um membro da família, violando todas as regras de segurança nacional).
As nuvens na política sul-africana não irão aumentar nem desaparecer com a morte de Mandela.
Na sua cela na prisão em Robben Island, Mandela tinha escrito numa das paredes a frase final do poema Invictus de William Ernest Henley: “I am the master of my fate, I am the captain of my soul” (sou o dono do meu destino, sou o capitão da minha alma). Ele foi. Agora caberá a nós lembrarmo-nos que é possível sermos os donos do nosso destino, capitães das nossas almas. Quer individualmente, quer em colectivo. E, como Mandela disse, “tudo parece impossível, até ser feito”.
Elisabete Azevedo-Harman fez o seu doutoramento na Universidade de Cape Town na Africa do Sul, onde viveu 6 anos. No presente, é professora de Ciência Política na Universidade Católica de Moçambique e Investigadora da Chatham House em Londres.