"A representação das sobras"
Publicado13 Jan 2015
Untitled, do artista chileno Alfredo Jaar, é um trabalho que estabelece a relação entre a cronologia do genocídio no Ruanda, em 1994, e as capas da revista americana Newsweek, evidenciando, pelo simples confronto entre a narração dos eventos trágicos e as imagens das capas, a parca visibilidade do acontecimento, face à sua gravidade. Moacir dos Santos, professor, investigador e curador de arte contemporânea brasileiro escreve na Revista Cult sobre esta obra.
A mera descrição do trabalho de Alfredo Jaar sugere a necessidade de indagar as razões que fazem com que a morte violenta de tantos habitantes de um país do continente africano – ocorridas, ademais, em período tão curto – não seja assunto suficientemente importante para ser matéria de capa de um dos principais veículos de notícias do mundo. Em verdade, tanto o assassinato em massa dos ruandeses quanto os motivos de sua inexpressividade midiática podem ser melhor entendidos – embora nunca justificados, é evidente – quando se leva em conta a existência do que o sociólogo Boaventura de Souza Santos chama de “linha abissal”, fronteira invisível que “separa o domínio do direito do domínio do não-direito”, para além da qual existe uma indistinção entre o legal e o ilegal, entre a verdade e a mentira, ou mesmo entre a vida e a morte. Para além dessa linha abissal, a humanidade é subtraída. E foi justo para lá que a colonização de parte da África por países europeus lançou países como Ruanda, expondo suas populações a formas extremas (internas e externas) de controle social, incluindo a aniquilação física.
Reconhecer o extermínio como prática de domínio implica admitir a existência daquilo que o filósofo Achille Mbembe nomeia de “necropolítica”, regime no qual a vida é submetida à morte e populações específicas são levadas à extinção. Ao relacionar a emergência de uma política que regula a distribuição da morte com a história da violência colonial (incluindo suas aparições contemporâneas), o filósofo aponta ser o racismo o que torna possível ao Estado exercer funções mortíferas. O racismo, diz Mbembe, é “a condição de aceitação da matança”; e é ele que explica o massacre de Tutsis por Hutus, ainda que as diferenças entre os dois grupos étnicos sejam mais construídas que naturais. É também o racismo que permite entender a ausência de qualquer referência a esse um milhão de homens, mulheres e crianças negros nas capas da revista Newsweek, ao longo dos cem dias em que eram assassinados. A necropolítica une a aniquilação física e a invisibilidade simbólica dos mortos.
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