A crítica é o plano?
Publicado15 Jan 2014
A Fundação Gulbenkian, uma das muitas coisas boas que Portugal tem (a falésia na crise, por assim dizer), através do seu excelente programa “Próximo Futuro” – cuja comissão científica tenho muito orgulho em integrar – sob a direcção do também excelente e criativo António Pinto Ribeiro (ok, fim dos superlativos...), publica dois volumes com o título “Grandes Lições”. Trata-se de conferências proferidas por académicos de renome (continuação dos superlativos). Lições grandes mesmo. O primeiro volume contém um texto interessantíssimo de Benjamin Arditi, cientista político mexicano (creio), com o título “As insurreições não têm um plano – elas são o plano”, uma ousada e brilhante crítica à tese defendida pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek, segundo a qual revoltas como as dos jovens em Londres ou no Magreb estariam votadas ao fracasso por não possuírem um plano. Ele articula essa falta de plano à ausência de reivindicações que desenhem, desde logo, um projecto alternativo de sociedade. Arditi discorda e diz que o protesto em si, e pelo simples facto de veicular um significado, desenha uma alternativa que se afirma contra o status quo e contém dentro de si a semente de algo melhor.
Esta é uma daquelas situações que levam alguns de nós a dizerem “ambos têm razão”. Só que, como logicamente é menos problemático dizer “nenhum tem razão”, opto mesmo por não dar razão a nenhum deles. O movimento “Occupy Wall Street” parece ter perdido fôlego. A Praça de Tahrir virou tragédia. Pontos para Zizek. Mas mudou alguma coisa. O mundo das finanças já não dá certas coisas por adquirido. No Egipto a luta continua. Pontos para Arditi. O problema de ambos, porém – e na minha percepção –, é que me parecem reféns das suas próprias teorias de conhecimento. Zizek acredita no fim da história, de preferência um fim que explique porque tivemos de sofrer, tipo São Paulo. Arditi parece um anarquista que fecha os olhos, atira-se ao barulho na esperança de que disso resulte algo bom. Não vou prosseguir com a reflexão sobre os dois. Como em (quase) todas as coisas da vida, inspiro-me neste assunto para reflectir sobre o meu País. Há um pouco das duas coisas no momento político que o País atravessa, algo que se manifesta na forma como interpelamos Moçambique criticamente. Eu diria, maltratando Zizek, que temos uma crítica sem plano, mas porque a modéstia obriga, também deixaria pairar no ar a interrogação que também maltrata Arditi sobre se a própria crítica seria o plano.
Sustenta a crítica no nosso País a convicção – não de todo errónea – segundo a qual uma vida melhor para todos nós seria possível. Tudo bem. O problema, contudo, é de assentar essa convicção numa premissa problemática, nomeadamente a premissa segundo a qual o mundo seria justo e que, portanto, a única razão que faz com que se não alcance essa vida melhor seriam os interesses veilados de alguém mau. É uma mistura explosiva entre a falácia do jogo de azar e a teoria da conspiração. Nestas circunstâncias a crítica vira um exercício de acusação alimentado apenas pela plausibilidade ideológica, nunca (ou quase nunca) pelo fundamento empírico ou lógico. A crítica vira teodicea, uma explicação reconfortante do nosso sofrimento. Pontos para mim contra Zizek. Atiça as chamas da crítica no nosso País a ideia – não de todo errónea – de que é importante falar contra o que está mal e não apenas uma vez, mas várias vezes, e com ardor. O problema aqui, todavia, é que quando a crítica vira o seu próprio motivo a sua qualidade perde importância, o que conta é apenas ... criticar, o que no nosso País significa dizer mal de, não importa de quem, apenas dizer mal de, repetir até à exaustão que está tudo mal, franzir o sobrolho contra todo aquele que se esquece de dizer que está tudo mal ou, o que é o mesmo, dizer mal de quem diz mal de e se esquece de apontar para o que está bem. Esse tipo de crítica é um cocktail Molotov dentro do qual ferve a demagogia e o ataque à pessoa. Essa crítica fica cega à mudança que ela própria pode produzir. Pontos para mim contra Arditi.
Qualquer que seja o caso, farta. E irrita. É uma espécie de construção social da imbecilidade política. O País real, os actores reais, as circunstâncias reais, tudo quanto pode ser recuperado pelo discurso atento à relação entre o empírico e o que é (ou pode ser, pouco importa!) perde importância e fica artefacto dum País, de actores e circunstâncias que só são reais numa crítica teleológica e narcisa. E Moçambique passa a ser isso mesmo, o que produz os seus analistas, os seus indignados e, para acrescentar insulto à ferida (como diriam os ingleses), os seus “democratas”, aqueles que percorrem o palco que a esfera pública lhes proporciona brandindo palavras que pensam por eles, palavras esvaziadas de sentido, meros rótulos duma realidade que há muito virou enteada duma crítica que, se calhar, ela própria é que é o plano. Pontos para Zizek e Arditi.
Moçambique: 0. Elísio: 0.
Cansa.
(texto publicado na página de Facebook de Elísio Macamo a 10 de Janeiro)
Elísio Macamo é docente de Sociologia do Desenvolvimento na Universidade de Bayreuth, Alemanha. Fez os seus estudos em Xai-Xai, Maputo, Salford, Londres e Bayreuth. Foi Investigador de Pós-Doutoramento na Universidade de Bayreuth, Investigador Convidado do Centro de Estudos Africanos em Lisboa, e AGORA-Fellow na Wissenschaftskolleg de Berlin. É Investigador no Stellenbosch Institute for Advanced Study (África do Sul), membro dos conselhos científicos das revistas "Afrika Spektrum" e "Indilinga - African Journal of Indigenous Knowledge Systems", membro da direcção da Associação Alemã de Estudos Africanos e membro do comité científico do CODESRIA. Publica regularmente na imprensa moçambicana, particularmente no jornal diário "Notícias". Publicou livros e artigos nas áreas da sociologia do risco, da política, da religião, do trabalho e do conhecimento.