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A Constituição do trabalho metropolitano: junho-outubro de 2013

Publicado23 Jan 2014

Giuseppe Cocco

O que caracteriza as manifestações de junho de 2013 é que elas não representam exatamente nada ao passo que, por um tempo mais ou menos longo, elas expressaram e constituíram tudo. Exatamente como o dizia o Abbé Seyes quando se perguntava o que era o “terceiro Estado” e dizia: ele é tudo, não representa nada, quer e deve se tornar algo[1]. O primeiro elemento é esse. Elas tiveram e continuam tendo uma dinâmica intempestiva, fogem a qualquer modelo de organização política (não apenas os velhos partidos ou o sindicatos, mas também o terceiro setor, as ONGs) e afirmam uma democracia radical articulada entre as redes e as ruas: auto-convocação e debates nas redes sociais, participação massiva às manifestações de rua, capacidade e determinação de enfrentar a repressão e até capacidade de construção e autogestão de espaços urbanos como foram a Praça Tahrir, as acampadas espanholas, as tentativas do Occupy Wall Street e, enfim, a Praça Taksim em Istambul , na Turquia. Para cada uma dessas ondas e dessas que chamamos de “primaveras”[2] houve um estopim especifico mas todas dispõem de uma mesma base social (por diferenciadas que sejam as trajetórias sócio-econômicas dos diferentes países) e dos mesmos processos de subjetivação. No caso do Brasil, todo o mundo sabe que o estopim foram os protestos contra o aumento do preço das passagens nos transportes públicos. Como foi o caso de outras marchas, a manifestação em São Paulo foi violentamente reprimida pela Polícia Militar. Só que dessa vez a faísca não se apagou numa “marcha da liberdade” e incendiou São Paulo e todo o País. Mas saber que o estopim foi esse não nos permite de avançar na análise.

Por que em junho? Qual foi o Kayrós? É difícil responder e talvez a característica própria desse tipo de movimento é que ninguém sabe propor razões “objetivas” indiscutíveis. Contudo, podemos avançar algumas antecipações e 3 explicações: no nível das antecipações podemos citar o manifesto Tatu or not Tatu, lançado pela Rede Universidade Nômade no dia 15 de junho de 2012, exatamente um ano antes. Nele era possível ler: “(...) Na época da mobilização de toda a vida dentro da acumulação capitalista, o capitalismo se apresenta como crise e a crise como expropriação do comum, destruição do comum da terra. (...). Não há nenhum determinismo, nenhuma crise terminal. O capital não tem limites, a não ser aqueles que as lutas sabem e podem construir”[3]. Uma segunda antecipação foi o manifesto lançado por uma pequena rede de coletivos (Redes e Ruas) para pensar um “levante” do Rio de Janeiro contra o consenso totalitário que dominava a cidade, em particular depois da re-eleição de seu Prefeito.

Quanto às “explicações”, a primeira tem a forma do “estopim” e é a quase coincidência do episódio da repressão da marcha pelo passe livre em São Paulo com a renovação das primaveras árabes e do 15M espanhol nas lutas duríssimas da multidão turca na Praça Taksim, em Istambul (não por caso, na segunda manifestação carioca, que já reunia 10 mil pessoas, um dos gritos era: “acabou a mordomia, o Rio vai virar uma Turquia”); uma segunda explicação está no fato que esse ciclo de “revoluções 2.0” começa a ter uma duração consistente (de mais de 3 anos) e entrou no imaginário, na linguagem de gerações de jovens que não formam mais suas opiniões na imprensa, mas diretamente nas redes sociais e, nesse meso sentido, se formaram nas pequenas experiências dos OcupaRio, OcupaSão Paulo, OcupaSalvador (em 2011); a terceira explicação é mais consistente e a mais importante e diz respeito ao que são essas “novas gerações” no Brasil de hoje, ou seja essas gerações de jovens que só conheceram o Brasil de Lula. O que é incrível e até irônico é que o próprio PT não tenha previsto isso e ainda hoje seja incapaz de enxergar esse dado importantíssimo. Silvio Pedrosa escreveu um dia que a filha ilegítima  do Lula não é Lurian, mas a multidão. Os dirigentes do PT e os intelectuais residuais do partido parecem estar dentro da Soyuz de seu pensamento, orbitando sobre um pais (um regime discursivo e seu consenso social) que não existe mais (estamos fazendo referência ao território soviético que continuava existindo no satélite artificial tripulado ao passo que a URSS tinha desaparecido depois da tentativa do golpe contra Gorbatchev, em 1991).

O movimento de junho tem muita proximidade com o ciclo global de lutas que começou com a primaveras árabes. Num primeiro nível, há em comum com o ciclo global a articulação entre as redes e as ruas como processo de auto-convocação das marchas e manifestações que ninguém consegue representar, sequer as organizações que se encontraram no cerne da primeira chamada: a tentativa de “empoderar” os rapazes do Movimento pelo Passe Livre em São Paulo (“oficializados” pela presença no Roda Viva e a negociação com Prefeitura e Estado) mostrou que eles não controlam nem dirigem um movimento que se auto-reproduz de maneira rizomática (as manifestações aconteciam ao mesmo tempo sem respeitar qualquer tipo de “trégua”). Num segundo nível, há em comum o esgotamento da representação política. No Brasil, esse fenômeno foi totalmente subavaliado pela “esquerda” e sobretudo pelo PT porque não o entenderam (e não o entendem). Inicialmente pensaram que fosse um problema das autocracias do Norte da África (Tunísia e Egito); depois que fosse a incapacidade dos socialistas espanhóis (o PSOE) de responder de maneira soberana às injunções das agências internacionais de notação ou do Banco Central Europeu (BCE). Pensaram também que o 15M espanhol não conseguia encontrar uma nova dinâmica eleitoral ao passo que o partido do Beppe Grillo mostrou na Itália um fenômeno eleitoral totalmente novo e desgovernado. Em seguida, pensaram que o Egito e a Tunísia foram normalizados eleitoralmente pelo islamismo conservador e aí aparece o levante turco contra o governo islâmico moderado ao passo que no Egito os militares retomaram o poder. No Brasil o PT e seu governo (e sua coalizão) pensavam estar blindados pelos recentes sucessos eleitorais (a eleição de Haddad, a re-eleição quase plebiscitária do Paes no Rio), por estar num ciclo econômico positivo e por ter enfim achado que o sagrado graal do “novo modelo” econômico seria na realidade reeditar o velho nacional-desenvolvimentismo, rebatizado de neo-desenvolvimentismo. O que a esquerda como um todo e o PT no Brasil não entenderam é que, a crise da representação é geral (mesmo que ela tenha sintomas e manifestações diferenciadas) e que os levantes da multidão no Egito, na Tunísia, na Espanha, na Turquia e agora no Brasil são a expressão, entre outras coisas, de uma recusa radical dessa maneira auto-referencial de pensar por parte dos governos e dos partidos político. Como dizia o manifesto da Rede Universidade Nômade, Tatu or not Tatu, “No Brasil são muitos os que ainda se sentem protegidos diante da crise global. O consenso (neo) desenvolvimentista produzido em torno do crescimento econômico e da construção de uma nova classe média consumidora cria barreiras artificiais que distorcem nossa visão da topologia da crise: a crise do capitalismo mundial é, imediatamente, crise do capitalismo brasileiro. Não nos interessa que o Brasil ensine ao mundo, junto à China, uma nova velha forma de capitalismo autoritário baseado no acordo entre Estados e grande corporações”[4]. Num terceiro nível há a principal proximidade entre todos esses movimentos: a base social dessa produção de subjetividade é o novo tipo de trabalho que caracteriza o capitalismo cognitivo. As redes que protestam e se constituem nas ruas de Madri, Lisboa, Roma, Atenas, Istambul, Nova Iorque e agora de todas as cidades brasileiras são formadas pelo trabalho imaterial: estudantes, universitários, jovens precários, imigrantes, pobres, índios .... ou seja a composição heterogênea do trabalho metropolitano. Não por acaso por um lado, uma de suas formas principais de luta foi a “acampada” ou o “occupy” e, pelo outro, o levante turco e aquele brasileiro tiveram como estopim a defesa das formas de vida da multidão do trabalho metropolitano: a defesa do parque contra a especulação imobiliária (a construção de um Shopping) em Istambul e a luta contra o aumento do custo dos transportes no caso do Brasil.

Diante dessas aproximações, as diferenças são bem menores, embora elas existam (e sejam até óbvias). Podemos apreender essas diferenças do ponto de vista das condições objetivas da cada país e do ponto de vista de como cada um desses movimentos foi transformando (ou não) a fase destituínte em momento constituinte. Assim, o 15M espanhol se apresenta como a experiência que mais conseguiu durar apesar de não ter revertido as políticas econômicas. As revoluções árabes foram normalizadas pelas vitórias eleitorais conservadoras, mas os levantes se tornam endêmicos. Na Turquia e ainda mais no Brasil não sabemos – literalmente – o que vai acontecer. É no plano das condições objetivas que encontramos a maior diferença: na Espanha e em geral no mediterrâneo, as revoluções são marcadas pelos processos de “desclassificação” das classe médias. No Brasil é exatamente o contrário: tudo isso acontece no âmbito e no momento da emergência de algo que é definido como uma “nova classe média”. Só que, essa nova composição de classe é na realidade a nova composição do trabalho metropolitano, lutando pelos parques ou pelos transportes públicos: ascendendo socialmente, os pobres brasileiros se tornam o que as classes médias européias se tornam .. descendo: a nova composição técnica do trabalho imaterial das metrópoles.

[1] E. Seyès, Qu’est-ce que le Tiers État?, edição de R. Zapperi, Genebra, 1970; Écrits Politiques, Paris, 1985.

[2] Cf. Giuseppe Cocco e Sarita Albagli (orgs.), Revolução 2.0, Garamond, Rio de Janeiro, 2013.

[3] http://uninomade.net/tenda/manifesto-uninomade-10-tatu-or-not-tatu/

[4] Cit.

 

Giuseppe Cocco é Doutor em História Social pela Universidade de Paris I, Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, editor das revistas Global BrasilLugar Comum Multitudes (Paris). Publicou Trabalho e cidadania (Cortez, 2000) e, com Antonio Negri, Global: biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Record, 2005), entre outros livros e artigos. Será um dos oradores na primeira sessão do 4º Observatório de África, América Latina e Caraíbas, dedicado aos "Novos Poderes", no próximo dia 8 de Fevereiro.