A presença das artes performativas latino americanos e africanas em Portugal desde 1974
Uma história ou se faz de factos ou não passa de suposições. E uma história que seja feita a partir de elementos esparsos, de memórias incompletas e arquivos improvisados, não é uma história, é um resumo de eventos. A história que se possa fazer a partir da elencagem dos espectáculos de produção africana, centro e sul-americanas, apresentados em Portugal desde 1974 até à actualidade, não é, nem pode ser ainda uma história com H próprio, porque o que aqui se apresenta – e mais se aprofunda na documentação disponível online –, não é senão a reunião da documentação possível de se traçar, entre outra que, dispersa, aguarda que, do eventual interesse agora suscitado, se podem elaborar, aí sim, histórias que façam uma História.
À partida, nem o objectivo era concluir a investigação, e menos ainda determinar as razões que trouxeram a Portugal estes espectáculos. Sobretudo porque uma análise teria que ser atenta aos planos políticos, económicos e culturais de cada pais, e ao modo como o teatro e a dança – e toda a economia de mercado que os sustenta – promove, activa e desenvolve.
O caso particular de Portugal, pelo modo como se coloca no cruzamento entre a Europa, África e o Centro-sul Americano, deveria, até pela sua História geopolítica, ter sido capaz de inscrever uma relação frutuosa, aberta e menos dependente de factores imponderáveis, dando assim a escolher entre uma ideia de multiculturalismo fabricado, e um que lhe é intrínseco.
Contudo, tal como em muitas outras histórias, esta também não se pode contar de uma só vez. Os problemas começam na própria pesquisa que, desejosa de proporcionar uma inédita e especializada base de dados que pudesse servir como material de estudo para investigações futuras, enfrenta obstáculos que emanam de problemas intrínsecos à própria gestão dos espaços e instituições culturais.
A impossibilidade de programar a longo prazo (e muitas vezes a médio) e tendo os recursos maioritariamente afectos à produção, deixou muitas estruturas sem a capacidade de constituírem um arquivo consultável, quando se deu o caso de terem guardado os registos. Não permite também, e por consequência, perceber se as escolhas são programáticas e de agenda ou, por outro lado, circunstanciais, deixando assim a investigação por conta da especulação, do improviso e da suposição.
Por outro lado, e não obstante a centralidade que nos caracteriza, não é possível encontrar nas bases de dados do Museu do Teatro ou da Biblioteca Nacional (ambas encerradas durante o período em que durou esta pesquisa), lugares por direito próprio (e até de lei) onde estas informações se devem guardar, formas de pesquisa que assegurem investigações temáticas. Mesmo quando se dá o caso de se ter, ao logo dos anos, e por diversos Governos, defendido uma política de cooperação com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) ou os do Mercosul, tal não proporcionou um processo de arquivo que, hoje, poderia, e muito, ajudar a perceber, se não de forma completa, pelo menos instigadora de novas pesquisas, os contornos de programação das instituições, no que respeita aos países do continente Africano, Centro e Sul Americano.
Dá-se ainda o caso de os jornais terem, como foi o caso, nomeadamente, do Público, no seu início terem dado particular atenção a festivais como o FITEI, que seguiam diariamente – ou o Expresso que cobria semanalmente e, agora, serem, quando são, pequenos destaques nas agendas. Razão pela qual, é importante que o que quer que se encontre nos jornais, e mesmo essa informação é, muitas vezes, contraditória, seja confrontado com os programas. E mesmo esses, sobretudo quando respeitam a companhias africanas, são parcos em informação contextualizadora. Houve um esforço de cruzamento de dados que se pretende perceptível na base de dados virtual mas que seria maçador incluir neste texto.
Não se pretende, com esta pesquisa – e menos ainda com este texto-guia, fazer uma historização desses espectáculos, mas apenas apontar algumas das questões mais interessantes que o levantamento, não exaustivo e em actualização permanente, trouxe, nomeadamente, como ponto de partida para investigações diversas.
É importante perceber que a relação que Portugal poderia ter tido, no plano intrinsecamente artístico, com estes países, deriva, como seria de esperar de modelos de programação que, depois da entrada de Portugal na União Europeia, se alteraram substancialmente. As relações privilegiadas que a História proporciona, justificam, em grande medida a relação de maior proximidade e presença de companhias de países como Brasil, Angola e Moçambique.
Isto é tanto mais significativo quanto se pode ler aqui, por um lado, uma comparativa dificuldade em se digerir um passado colonial e, por isso, especulo, não querer dar à presença de espectáculos dos PALOP, qualquer tipo de conotação, fosse ela mais ou menos politica. Certo é que, entre o tempo que medeia a revolução e a entrada na União Europeia, encontramos com mais frequência espectáculos vindos da América do Sul e, esporadicamente, vindos de África, uma tendência que começará a reduzir-se quando comparada com o “assalto” das produções europeias a partir do momento em que começamos a receber em Portugal grandes eventos, como as Capitais Europeias da Cultura, ou a organizar exposições mundiais.
O surgimento de redes de circulação de espectáculos, e a possibilidade de suprimir anos de atraso no que respeita à apresentação regular de produções estrangeiras, bem como a necessidade de, assim, responder a linhas estéticas normalizadoras e menos dependentes de uma relação de distância causada pelo exotismo e algum comprometimento politico, poderão ter levado a uma divisão que, tenta-se aqui pela primeira vez, pode ajudar a melhor enquadrar as peças apresentadas no contexto nacional.
Assim, propõe-se a seguinte divisão:
- 1974 a 1991
- 1992 a 2005
- a partir de 2006
-
As razões aparecerão como evidentes. A saber:
1974 a 1991:
- no primeiro período, que comporta a data revolução de 25 de Abril (data simbólica determinada pelo estudo que, centrando-se na produção contemporânea, deixa de lado as apresentações anteriores de companhias, sobretudo de teatro, que vieram, por exemplo, do Brasil em períodos de verão para os teatros de Lisboa) até ao evento Europália, onde Portugal foi país convidado e se proporcionou o contacto da dança portuguesa com o estrangeiro, é também o período em que nascem o Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI), no Porto, em 1978, e o Festival Internacional de Teatro de Almada (FiTA), em 1984.
Por comparação, o FITEI, criado em 1978 é paradigmático. Logo na primeira edição apresentou quatro espectáculos sul-americanos: dois da Venezuela, pelo Taller de Teatro La Barraca, um do México, pelo Mímica del Oprimido, e um do Chile, do Teatro del Lautaro. Será, aliás, através do FITEI que se apresentarão, em Portugal, de forma regular, espectáculos vindos do continente sul-americano, da quase totalidade dos países, em produções de rua, palco, para a infância, adaptações de clássicos ou textos contemporâneos. Será ainda através do FITEI, e mais tarde, a partir de 1987, do FiTA, que vamos começar a perceber as principais linhas de um teatro onde estão presentes as mesmas questões apontadas à literatura, como o realismo mágico, ao cinema, com uma forte presença da dimensão social e do confronto com a realidade, ou das artes plásticas, com um forte pendor simbólico. O trabalho desenvolvido pelos dois festivais, ainda que num caso, o FITEI, isso esteja contido na sua matriz e noutro, o FTA, não exista distinção clara entre as propostas, são das que melhor permitem responder a uma lógica de programação não temática, mas ainda assim, prolongada no tempo e, por isso, panorâmica, mesmo a ideia de que possamos estar a falar de espectáculos que não espelhem, segundo padrões europeus, a totalidade dos géneros de cada país e, por consequência, a possibilidade de interpretarmos, como um todo, essa realidade performática. A verdade é que a vontade de ler um quadro compreensivo e intenso ao longo das edições, cai por terra quando percebemos que os países presentes estão longe de contemplar, por exemplo para usar o exemplo do Festival de Teatro de Almada um terço do continente africano, que trouxe espectáculos do Senegal, Marrocos, Argélia, Tunísia, Camarões, Moçambique, Zimbabué e Angola.
Nesse aspecto, a América Central e do Sul está mais bem representada, com presenças vindas do México, Cuba, Colômbia, Venezuela, Equador, Brasil, Uruguai, Chile e Argentina. Mas, quer num caso quer noutro, é impossível determinar a que critérios obedecem as escolhas, já que a variedade de propostas não se apresentou inscrita em grupos ou linhas temáticas.
Ainda no primeiro período, é importante referir que experiências como as vindas dos encenadores Adolfo Gutkin, da Argentina, e Augusto Boal, do Brasil, para trabalharem em Portugal permitiram, em certa medida, não só recuperar anos de atraso em relação a técnicas que, pelo menos em Portugal, e na altura em que surgiram, permitiram alargar um teatro que, imediatamente após a revolução, abraçou o que poderíamos apelidar de “causa Brechtiana”.
1992 a 2005:
O segundo período permite integrar, desde logo, o ano-central para as Comemorações dos 500 dos Descobrimentos Portugueses. Curiosamente, não se encontra um compêndio com informações precisas quanto aos espectáculos apoiados, produzidos, programados ou comissariados, como também não se conseguem encontrar as lógicas de continuidade nas instituições a que o programa aludia. E é um período que permite integrar, em 1992, a abertura do Centro Cultural de Belém e em 1994, a abertura da Culturgest, vectores fundamentais para uma programação mais centrada num diálogo de contemporaneidade e proximidade com os padrões europeus.
A Culturgest assumiu, nesse sentido, uma responsabilidade de organização e inscrição do discurso contemporâneo atento às noções de contemporaneidade que ultrapassassem as fronteiras europeias. A programação “Extremos do mundo”, em 2000, trazia, por exemplo essa marca: “contribuir para a criação de uma actividade pública mais crítica e mais esclarecida sobre as actividades culturais que vão acontecendo entre nós, sobretudo as que, pela sua natureza mais estranha, nos provocam alguma perplexidade.”
Houve, sempre, portanto, um combate com o exótico. Razão pela qual é muito importante fazer relacionar a apresentação, e a recepção de espectáculos de teatro, com o que se ia apresentando na área da dança.
O ano de 1994 é importante ainda porque é aí que começa o festival A Sul, em Faro, sob organização do Centro de Artes Performativas do Algarve e foi interrompido em 2007 por falta de acompanhamento dos apoios públicos, foi responsável por trazer. Ao longo dos anos, foram vários os espectáculos, com diferentes noções de Sul ( a última edição, em 2006, foi dedicada, por exemplo, ao Japão) que chegaram ao Algarve, na sua maioria vindos do Norte de África, no que foi um acompanhamento do que se estava a passar em França com a entrada de leão das estruturas de produção nos orçamentos de pequenas companhias africanas, muitas delas que aproveitam para passar do regime semi-profissional para o profissional.
É esse circuito que se começa a instituir e, em certa medida, vamos poder começar a ver no Festival Danças na Cidade, que mais tarde se chamaria Alkantara e que começa em 1993. Em 1997, o Danças na Cidade institui o ciclo “Dançar o que é nosso”. Como explicavam na altura: “com o objectivo de reforçar e dinamizar o intercâmbio artístico entre artistas e organizações culturais da Europa, África e América Latina.” O festival encomendou obras aos cabo-verdianos António Tavares e Mano Preto e convidou o brasileiro Marcelo Gabriel para residir e trabalhar durante quase um mês em Portugal. Dois anos depois, o festival organizaria no Centro Cultural de Belém uma conferência internacional com organizadores e produtores de Angola, Brasil, Cabo Verde e Moçambique e congéneres europeus para debater modos de trabalho. Os resultados dessa conferência foram editados em livro em 2001 e são fundamentais para perceber os pontos de contacto entre as práticas artísticas em diferentes países. O livro era constituído pelas comunicações apresentadas me 1999 no Centro Cultural de Belém por criadores e operadores culturais de Angola, Cabo Verde, Brasil, Moçambique, Portugal, França, Alemanha, Holanda, Bélgica, Grã-Bretanha e EUA, com o objectivo de reflectir sobre “o seu trabalho e o modo como este é afectado pelos desafios do multiculturalismo”, dividindo-se em quatro temáticas centrais: Local vs. global, estratégias de intervenção (ou não?), Intercâmbio cultural e pós-colonialismo, Contemporaneidade.”
A alteração de nome de Danças na Cidade para Alkantara, abraçando assim a tradução árabe da palavra ponte, leva mais longe esta relação de intercâmbio, nomeadamente através da presença em redes internacionais que permitem co-produzir espectáculos em Moçambique, como os de Panaibra Gabriel, ou criar residências artísticas em parceria com o festival Panorama Rio Dança, no Rio de Janeiro.
Estas redes de contactos entre companhias portuguesas e outras companhias de países com os quais Portugal tem raízes históricas, responde, de certa forma à incapacidade de instituição em Portugal de uma verdadeira presença artística e profissional das comunidades africanas. Razão pela qual, e à margem desta investigação, importará investigar de que modo a apresentação esparsa de espectáculos nos principais palcos, contribuiu, negativa ou positivamente, para o desenvolvimento dessa mesma comunidade Africana na cena artística e profissional, os efeitos que isso tem numa presença que não se prenda ao exótico. Veja-se por exemplo, o caso do encenador Rogério de Carvalho, talvez aquele que mais pontes fez entre o teatro angolano e o português e que, para encenar, em 2006 no Teatro Nacional São João, “Os Negros”, de Jean Genet, com um elenco totalmente negro, como a peça pedia, tenha que ter ido fazer audições a países africanos por não encontrar em Portugal actores profissionais. Ou ainda, um dos poucos exemplos que quis trabalhar essa relação de distância e proximidade, a Associação Regresso das Caravelas que, com os anos, ficou pelo caminho. Uma das suas peças, “Museu do Pau Preto”, passou peça Culturgest em 2000, e focava-se num desejo de relação com as raízes africanas, entretanto distantes, de adolescentes portugueses.
É isso que vamos encontrar num dos mais importantes projectos de intercâmbio entre Portugal e África: a Cena Lusófona.
O trabalho iniciado em 1995, merece particular atenção porque se inscreve numa outra lógica, já não tanto a da apresentação de espectáculos, mas de uma efectiva reflexão sobre o potencial criativo entre companhias nacionais e africanas de língua portuguesa. Companhias como o Teatro O Bando, Centro Dramático de Évora, Teatro da Rainha e Escola da Noite puderam trabalhar companhias de Moçambique (Mutumbela Gogo, Casa Velha, Olá Produções, Hala ni Hala), Angola (Elinga Teatro), Cabo Verde (Grupo de Teatro do Centro Português do Mindelo) ou companhias (Capitango) e artistas de São Tomé e Príncipe, numa lógica de co-produção e partilha de recursos, nomeadamente, e mais importante, o intercâmbio de autores, encenadores e actores. Para além dessas co-produções, a Cena Lusófona organizou e apoiou a digressão pelos países lusófonos de diversos espectáculos e companhias dos países de língua portuguesa. Um outro aspecto relevante prende-se com o facto de a maioria das companhias nacionais apoiadas pela Cena Lusófona, ou aquelas com quem vieram as africanas trabalhar, se localizarem for a de Lisboa, instituindo uma outra geografia, também ela indicativa de uma ausência de redes de apresentação regular. Por isso mesmo, não é possível afirmar de que forma estas trocas, maioritariamente de lá para cá, se traduzem, necessariamente, em intercâmbios concretos, nem de que modo se estabeleceu uma relação mais profunda, e continuada, entre as companhias e os públicos.
No fundo, e recuperando o texto de apresentação do ciclo “Multiculturalismo e Mestiçagem”, apresentado em 2000 na Culturgest, “confrontamo-nos com a dificuldade em entender alguns pressupostos dos seus criadores - que obedecem a outras estéticas e intenções artísticas - com a estranheza que algumas criações podem provocar nos nossos públicos e, principalmente, com a inexistência de instrumentos de análise e discussão pública sobre a deslocação, actualmente cada vez mais constante, destas obras pelo mundo.”
Importa, por isso, destacar a aposta do Teatro Nacional São João, em mini-festivais, como o Portogofone que, de forma esporádica, trouxe espectáculos do Brasil e Angola, ora integrando-os no FITEI, ora apresentando-os por sua conta. Foi assim em 2004, 2007 e 2009. E é esse aspecto, juntamente com a alteração de nome do Danças na Cidade para Alkantara, como explicado acima, que nos permite encerrar, em 2005, este segundo período.
A partir de 2006
A mudança de direcção na Culturgest em 2004 e o início dos programas na Gulbenkian, como “O Estado do Mundo”, “Distância e Proximidade” ou este “Próximo Futuro”, inscrevem-se já num contexto onde não se distinguem as propostas vindas, nomeadamente, de alguns países da América do Sul, como a Argentina, com Gerardo Nauman (Alkantara 2010), Federico Leon (Serralves 2008) e Daniel Veronese (FiTA 2010), ou do Chile, com Guillermo Calderon (Próximo Futuro, 2010) ou do Brasil como Lia Rodrigues (desde 2002 na Culturgest), ou de África, como o congolês Faustin Lyenekula (Alkantara/CCB, 2008) e a sul-africana Nelisiwe Xaba (Estado do Mundo, 2007), que já se instituíram no circuito europeu de programação e, por isso, de essencial têm o discurso e não as condições de produção. Hoje já é possível vê-los em festivais de diferentes dimensões, ou até mesmo fora deles, apenas importando a sua origem se dele depender seu discurso. Um discurso que, de um modo geral, aponta, uma vez mais, para um jogo de identificação social, politico, geográfico e cultural e que se insere numa lógica, essa sim, arquivística, documentalista e, por vezes, hiper-real.
Uma breve nota para dizer que muita da informação disponível foi coligida, pelas próprias intituições pela primeira vez, a pedido expresso desta investigação. A todas, e são muitas, se agradece.