Sabem o que é sair de um espectáculo de teatro com os pelos dos braços eriçados? Ainda se lembravam? Perguntava-se um espectador à saída do último espectáculo de Guillermo Calderón, na verdade do díptico constituído por Discurso e Villa. As duas peças decorrem na Villa Grimaldi, conhecida na Ditadura por Londres 38, uma casa que está associada ao regime de Pinochet, um sítio que foi um dos lugares mais tenebrosos de tortura de presos políticos e onde morrerram 93 pessoas entre Setembro de 73 e setembro de 74. A casa - hoje monumento da História do Chile - está no seu interior sinalizada por uma planta indicando os lugares e o tipo de actividades dos torturadores: identificação dos presos, tortura, sala dos guardas, arquivo dos ficheiros, etc.
A primeira peça apresentada – Discurso - é um discurso ficcionado da despedida da Presidenta Michelle Bachelet quando deixou o Palácio presidencial . E começa: “Hoje não vos vou falar com palavras dóceis e esperadas…” E segue-se um manifesto do exercício do poder do ponto de vista de alguém que se assume como mulher, pediatra, optimista e socialista. Não é um discurso vago, nem tão pouco conceptual. É um discurso sobre as expectativas aquando da sua tomada do poder, das suas e das dos chilenos, e uma avaliação da História recente do Chile, a começar nos anos da ditadura. Nada há de demagógico ou sumptuoso neste discurso, que é representado por três jovens actrizes. E é fascinante como Calderón pega numa matéria tão arriscada, numa personagem que é considerada como a melhor presidente da História do Chile – que já começa a ganhar contornos míticos - e interroga o que é o poder; no caso concreto de alguém que o exerceu sempre com o objectivo de transformar socialmente o país. Tendo sido uma presidente que sempre apoiou as artes e o teatro em particular (são memoráveis as suas recepções fraternas e simples aos actores, encenadores e programadores de teatro no Palácio de la Moneda) nunca há nada de narcísico neste Discurso. É uma crença associada a um sentido do real que foram duas características do seu governo:”Esperemos que o capitalismo seja apenas uma fase negra da historia e que depois venham coisas melhores” e “Não sou ingénua, sou optimista”. Que fazer? Como fazer? Interroga-se a Presidenta. Num momento da História em que todos reclamamos por líderes políticos de densidade intelectual, coragem e promessa de futuro, ou seja, num momento em que reclamamos por heróis contemporâneos, Calderón atreve-se a tratá-los.
E depois ? Que se poderia esperar? Parece que o Discurso tinha encerrado a questão. E chega a segunda parte que decorre na mesma sala e com as mesmas actrizes e o tema é aparentemente simples: que fazer àquela casa que tem esse passado tão histórico e é uma memória a preservar da luta clandestina e da tortura? As três actrizes discutem frente a uma mesa sobre a qual está uma maquete da Villa Grimaldi. Trata-se de uma comissão que deve decidir qual a opção a tomar: fazer um museu contemporâneo interactivo e repleto de tecnologia que apresenta a História da casa de uma forma virtual, com detalhes de como eram feitos os interrogatórios –“basta um clic do rato”- ou fazer uma casa do terror onde seja óbvio o tipo e actividades executadas pelos torcionários e, mais tarde, aparecerá uma outra hipótese: uma casa simples por onde se passasse e se pensasse na alegria que seria viver naquela casa antes e depois do período triste. A partir deste dispositivo realista, aparentemente simples, até banal num campo mediático, Calderón constrói uma das mais fortes, sólidas, profundas dramaturgias sobre a criação humana das artes, a validade da arte contemporânea, o debate democrático, os conflitos ideológicos, o papel da museografia; e em nenhuma situação há qualquer sinal da introdução ideológica possível do autor. O final absolutamente inesperado é de uma grandeza humana só possível de conceber por aquele que é hoje um dos mais fundamentais dramaturgos e encenadores contemporâneos. Calderón tem tido a coragem e a sabedoria de trabalhar com temas dolorosos, presentes, utilizando reportório clássico (Neva baseado em Tchekov) ou textos actuais, onde está sempre presente a relação do teatro com a cidade, indo fundo nas suas questões, indo até ao limite do pensável fazendo dele um dramaturgo de descendência directa dos grandes autores gregos da tragédia clássica.