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"Santiago a Mil" já começou!

festival santiago a mil

O Festival "Santiago a Mil" começou no passado dia 3 a sua 20.ª edição, que se prolongará até 20 de Janeiro de 2013, apresentando 71 obras, entre propostas nacionais e internacionais, para além da realização de oficinas, mesas redondas e encontros com artistas.

Celebrando 20 anos de existência, este Festival dedica-se este ano ao tema genérico "En la medida de lo imposible" (na medida do impossível), elucidando bem a continuidade e ambição de um dos mais importantes eventos no domínio das artes performativas a partir da América Latina.

Lembram-se de "Gladys", que foi apontado pelos críticos do jornal Público como o melhor espetáculo de teatro em Portugal no ano 2012? Veio da 19.ª edição de "Santiago a Mil".

Mais sobre o Festival, aqui.

Mais sobre "Gladys", apresentado no Anfiteatro ao Ar Livre da Gulbenkian no âmbito do Programa Próximo Futuro, aqui.

Flashes de Santiago V

Published18 Jan 2011

Tags américa do sul argentina santiago a mil teatro

Os filhos da ditadura

A encenadora e autora argentina Lola Arias apresentou Mi Vida Después. Como subtítulo poderíamos colocar Os filhos da ditadura. Trata-se de uma peça no formato de teatro documental (conhecemos as referências dos The Third Angel), que começa nos anos da ditadura argentina em 1982, e termina num hipotético ano de 2056. O elenco é constituído por actores que foram crianças ou adolescentes neste período e as histórias, com múltiplas saídas e versões, referem-se a este período e são ilustradas por documentos reais ou forjados arquivados ao longo dos anos da ditadura. A peça tem uma energia rara, para o qual conta a presença de actores músicos-cantores rock e a utilização recorrente de bateria e guitarra elécticra. O humor e a ironia são muito inteligentes e, mais uma vez, o teatro inovador consegue combinar uma reflexão sobre a história recente, uma qualidade dramatúrgica, excelência de representação e prazer de performance.

Flashes de Santiago IV

Sabem o que é sair de um espectáculo de teatro com os pelos dos braços eriçados? Ainda se lembravam? Perguntava-se um espectador à saída do último espectáculo de Guillermo Calderón, na verdade do díptico constituído por Discurso e Villa. As duas peças decorrem na Villa Grimaldi, conhecida na Ditadura por Londres 38, uma casa que  está associada ao regime de Pinochet, um sítio que foi um dos lugares mais tenebrosos  de tortura de presos políticos e onde morrerram 93 pessoas entre Setembro de 73 e setembro de 74. A casa - hoje monumento da História do Chile - está no seu interior sinalizada por uma planta indicando os lugares e o tipo de actividades dos torturadores: identificação dos presos, tortura, sala dos guardas, arquivo dos ficheiros, etc.

A primeira peça apresentada – Discurso - é um  discurso ficcionado da despedida da Presidenta Michelle Bachelet quando deixou o Palácio presidencial . E começa: “Hoje não vos vou falar com palavras dóceis e esperadas…” E segue-se um manifesto do exercício do poder do ponto de vista de alguém que se assume como mulher, pediatra, optimista e socialista. Não é um discurso vago, nem tão pouco conceptual. É um discurso sobre as expectativas aquando da sua tomada do poder, das suas e das dos chilenos, e uma avaliação da História recente do Chile, a começar nos anos da ditadura. Nada há de demagógico ou sumptuoso neste discurso, que é representado por três jovens actrizes. E é fascinante como Calderón pega numa matéria tão arriscada, numa personagem que é considerada  como a melhor presidente da História do Chile – que já começa a ganhar contornos míticos - e interroga o que é o poder; no caso concreto de alguém que o exerceu sempre com o objectivo de transformar socialmente o país. Tendo sido uma presidente que sempre apoiou as artes e o teatro em particular (são memoráveis as suas recepções fraternas e simples aos actores, encenadores e programadores de teatro no Palácio de la Moneda) nunca há nada de narcísico neste Discurso. É uma crença associada a um sentido do real que foram duas características do seu governo:”Esperemos que o capitalismo seja apenas uma fase negra da historia e que depois venham coisas melhores” e “Não sou ingénua, sou optimista”. Que fazer? Como fazer? Interroga-se a Presidenta. Num momento da História em que todos reclamamos por líderes políticos de densidade intelectual, coragem e promessa de futuro, ou seja, num momento em que reclamamos por heróis contemporâneos, Calderón atreve-se a tratá-los.

E depois ? Que se poderia esperar? Parece que o Discurso tinha encerrado a questão. E chega a segunda parte que  decorre na mesma sala e com as mesmas actrizes e o tema é aparentemente simples: que fazer àquela casa que tem esse passado tão histórico e é uma memória a preservar da luta clandestina e da tortura? As três actrizes discutem frente a uma mesa sobre a qual está uma maquete da Villa Grimaldi. Trata-se de uma comissão que deve decidir qual a opção a tomar: fazer um museu contemporâneo interactivo e repleto de tecnologia que apresenta a História da casa de uma forma virtual, com detalhes de como eram feitos os interrogatórios –“basta um clic do rato”- ou fazer  uma casa do terror onde seja óbvio o tipo e actividades executadas pelos torcionários e, mais tarde, aparecerá uma outra hipótese: uma casa simples por onde se passasse e se pensasse na alegria que seria viver naquela casa antes e depois do período triste. A partir deste dispositivo realista,  aparentemente simples, até banal num campo mediático, Calderón constrói uma das mais fortes, sólidas, profundas dramaturgias sobre a criação humana das artes, a validade da arte contemporânea, o debate democrático, os conflitos ideológicos, o papel da museografia; e em nenhuma situação há qualquer sinal da introdução ideológica possível do autor. O final absolutamente inesperado é de uma grandeza humana só possível de conceber por aquele que é hoje um dos mais fundamentais dramaturgos e encenadores contemporâneos. Calderón tem tido a coragem e a sabedoria de trabalhar com temas dolorosos, presentes, utilizando reportório clássico (Neva baseado em Tchekov)  ou textos actuais, onde está sempre presente a relação do teatro com a cidade, indo fundo nas suas questões, indo até ao limite do pensável  fazendo dele um dramaturgo de descendência directa dos grandes autores gregos da tragédia clássica.

Flashes de Santiago a Mil (II)

A Companhia dos Actores, companhia brasileira que muitos portugueses conhecem através da apresentação de peças na Culturgest na década de 90, e no CCB há poucos anos, está aqui presente com um conjunto de obras muito representativas do seu reportório. Algumas delas fazem parte de um ciclo de pequenas peças de cerca de 45 a 60 minutos, maioritariamente monólogos e encenadas por encenadores não residentes na Companhia. É o caso da obra Bait man escrita e encenada por Gerald Thomas. É uma obra sobre as ditaduras, sobre o medo e como o ultrapassar. E, curiosamente, é uma obra que explora uma linha completamente diferente da maioria do bom teatro sul-americano que trabalha estes temas. De uma maneira geral, eles são tratados, por exemplo no Chile, de uma forma ressentida, amargurada, de algum modo discorrendo sobre o trauma para, possivelmente, dele se libertarem. Bait man é, ao contrário, uma obra provocadora, iconoclasta, onde a fisicalidade e alguma escatologia associadas ao humor estão sempre presentes. Que se pode dizer quando, alguém ensanguentado que acaba de ser submetido à tortura diz como primeira frase: “o que era bom, mesmo bom agora, era tomar um champanhe”. O actor Marcelo Olinto realiza uma performance de invulgar fisicalidade e ironia. A estratégia da encenação possibilita algum entendimento do que deve ser viver sob a ditadura, qualquer uma.

 

É tão bom ver bons actores representarem bom teatro. Vale as horas de espera, os dias cheios de espectáculos medianos ou sofríveis, o cansaço, a decepção, o calor das salas ou o seu desconforto. É uma expressão perfeita que o mundo, às vezes, consente. No Teatro Cariola, um teatro muito antigo de um bairro popular de Santiago - quase em ruínas, mas onde ainda eram visíveis sinais do glamour e da riqueza do tempo em que foi construído, no princípio do século XX, com os seus mil lugares e um palco gigantesco -, foi apresentada Chaika, que é a tradução fonética da palavra Gaivota em russo. O texto base era de Tchekov, claro. Apropriado como acontece muitas vezes, mas apropriado com uma dramaturgia correcta, actualizando, sem efeitos, o texto no contexto de uma cidade libertada. Com um texto assim poder-se-ia ficar pela sua leitura, o que já seria bastante, mas não. Vieram os actores deste Colectivo de Montevideu e representaram, com todo o corpo, com uma dicção perfeita, modulações adequadas, suportadas por técnicas de representação eficazmente incorporadas, por timbres de vozes convincentes. Eram excelentes, os actores. É tão bom ver um espectáculo assim.

Flashes de Santiago a Mil

Santiago a Mil, o Festival de Teatro de Santiago do Chile, iniciou a sua edição deste ano com um programa que combina produções europeias de invulgar qualidade com produções latino-americanas, representando a maioria dos países deste continente. Um dos mais importantes e profissionais festivais de teatro do mundo a assumir-se como plataforma mundial do teatro contemporâneo. De tal forma que foi ontem anunciada a criação de um Mercado para as Artes Performativas que ira acontecer na próxima edição de 2012.

Peças de teatro

Las Analfabetas, texto de Pablo Paredes para duas maravilhosas actrizes: Valentina Muhr e Paly García Diseño. Texto sofisticado, dramaturgia clara e eficaz com detalhes preciosos de linguagem e de trama. As relações de poder entre quem ensina - a professora - e quem aprende, neste caso, uma analfabeta de cinquenta anos; as relações amorosas que acontecem no processo de aprendizagem do acto de ler. Tudo a propósito de alguém que quer aprender a ler só para poder ler uma carta que o pai falecido lhe deixou escrita. Para quem tem acompanhado o teatro chileno, nomeadamente através de Neva e Hechos Consumados, este é mais uma prova da grande tradição do teatro chileno, agora com dramaturgias actuais e actores extraordinários.

Amledi, el tonto, escrita e dirigida por Raúl Ruiz, é o seu último trabalho, e a sua estreia na encenação e direcção teatral. Não é parecido com nada; é um objecto de uma estranheza radical: mistura de fábula de animais combinada com história das religiões, história da convivência entre Mapuchos e Vikings (há provas arqueológicas da presença de Vikings no território que hoje é o Chile). Um espectáculo sincrético, anacrónico, que surpreende em cada momento que passa: imprevisível durante as três horas de duração num cenário que evoca o grande teatro de texto do princípio do século passado ou as grandes narrativas hollywodescas sobre Roma, Grecia, Cleópatra... um texto de uma sabedoria antiga. Fenomenal, como diriam os Chilenos!