Miriam Leitão, na edição online do Jornal Globo de 28 de Novembro
Na orla da Zona Sul tudo parece quase normal. É o que verifiquei na minha caminhada por Leblon, Ipanema, Copacabana num domingo que começou com sol, às vezes nubla, depois o sol volta. O assunto das atenções é um só: o Alemão.
Ontem fui dormir quando já era hoje. A uma da manhã. Os meninos do @vozdacomunidade avisavam no tuiter que se ouvia no Alemão " muitoooo tiro". Acordei às seis. No Globo Online e no Voz a informação era que a invasão não tinha começado. Demorei um pouco a sair de casa, mas às sete e meia já estava na praia, naquele comecinho do Leblon onde está a estátua do Zózimo. Saudade do Zózimo. "Nada mais será surpresa para esta coluna", pensei, lembrando dele.
Mas havia uma surpresa. Pensei que a praia estaria vazia e estava na maior agitação com um grupo de corredores preparados, de camiseta igual e aquela estrutura dos eventos esportivos. Agrupavam-se, aqueciam-se, animavam-se sob o comando do som. Resolvi ouvir minha música, escolhi internacional.
O dia está lindo, aberto, mar azul. Passei por uma criança branca com sua babá negra. Depois por uma criança e mãe negras. Perto da água vi pouca gente ainda, brancos e negros se misturando. Mas há muito perdi a ingenuidade e sei das partições dessa suposta democracia das praias.
Na orla caminho passando pelos corredores a minutos da largada. Sempre quis correr. Não sei. Ando rápido, apenas. Cruzo com uma moça simpática que me diz coisas de aquecer o coração sobre o meu trabalho, ando mais rápida, animada. O lixeiro me dá um sorriso de alegrar ainda mais a vida. Retribuo.
A largada começa. Eu ando rápida na parte da calçada onde ficam os andadores, crianças com suas babás, velhinhos com suas artrites, turistas e apenas caminhadores como eu. Os corredores ficam na pista que nos dias normais é dos carros. As bicicletas dividem a pista delas com os skates. Tudo normal demais para um dia tão anormal. "Nos vamos estar sempre juntos" canta a música no meu ouvido.
Tem um pouco menos de gente do que o normal, mas os corredores tratam de suprir a falta dos faltantes. E são tantos, aglomerados ali no caminho do Arpoador que desisto de ir até o fim. Viro, atravesso, passo perto do Fasano, e entro pela rua lateral no caminho de Copacabana. Na esquina entre Joaquim Nabuco e Nossa Senhora de Copacabana uma aglomeração olha fixo para dentro de uma farmácia. É a TV ligada na Globonews contando que tudo pode começar a qualquer momento. Vou para a Avenida Artlântica retomar a caminhada. Esbarro sem querer num velhinho atravessando a rua, peço desculpas. E retorno recebo um carinho no braço e um sorriso encantadores Na orla mais corredores. Eles nunca se cansam? Resolvo ficar do lado de cá a avenida, na calçada dos prédios.
-Bom Dia! Diz enfático um porteiro do prédio
Velhos sentam nos bancos, bebês e babás passam. Jovens desfilam sua beleza a caminho do mar. Eu apresso o passo para compensar o cuidado nas travessias das ruas, Na Figueiredo de Magalhães, quase perto do Posto 3, decido entrar em Copabana atrás de um taxi. Outro grupo em frente a um bar, um já com cerveja pouco antes das nove. Todos olhos vidrados para dentro do bar: na TV a manchete: Começou a invasão do Alemão.
Peguei o terceiro taxi que passou. Sorte. Ele estava com a TV ligada na Globo, Márcio Gomes dando as últimas notícias e o motorista completa.
-Lá tá muito cheio de gente, mas as ruas estão mais vazias do que o normal.
- Mas voce tem ido "lá"?
-Estou lá o tempo todo. Estou com um grupo de jornalistas de Porto Alegre, da Zero Hora. Ontem fiquei lá o dia inteiro. O que a imprensa chama de tiroteio, eu chamo de tiro a esmo. Quando o helicóptero passa eles atiram. A comunidade está muito tensa. Com medo né? Natural. Eu deixei os jornalistas lá cedinho. Agora vim aqui para comprar um remédio para minha esposa e voltar para lá. Só te peguei porque a farmácia abre `as dez. A gente tem esperança, mas é difícil. Muito cheio de ruela lá, os bandidos é que conhecem o terreno.
Pergunto que se ele já viveu algum episódio de violência. Levou tiros há quatro anos. Estava conversando com policiais e bandidos passaram atirando. Ele recebeu um na tíbia, outro no abdomen. Mas se salvou.
-Não fiquei com sequelas, mas as cicatrizes são feias. Chato, por que eu não tinha marca nenhuma.
O telefone dele toca. Mais um do grupo do Zero Hora que não tinha ido e quer ir para o Alemão, ele conta.
Ruas mais vazias na subida da Gávea. Chego em casa, abro o computador no Globo e a notícia é que a Polícia tomou o Alemão.
Na sexta feira passei pelo maior sufoco no aeroporto de Belo Horizonte tentando voltar para o Rio. Voo cancelado, depois tempo fechado e por cinco horas lutei para chegar. Quando desembarquei tuitei:
_Cheguei ao Rio, ufa!
Foi um tal de gente curtir com a minha cara: "Devia dizer, saí do Rio, ufa!" ou "Saia enquanto é tempo". Um pergunta por que moro aqui.
Os tuites me surpreenderam. Ora, por que moro aqui? Bom, não me passa pela cabeça sair.
Fico por tudo isso que contei acima. Porque escolhi. Porque tudo aqui é intenso e familiar, bonito e aflitivo, complexo e promissor.
Nina Simone no meu ouvido canta: "Oh senhor, não me deixe ser mal compreendida" (oh Lord, don't let me be misunderstood". É isso. A mensagem não tem como ser confundida: fico por amor, e amor não se discute, nem se explica.
Miriam Leitão, na edição online do Jornal Globo, de 27 de Novembro
Quem mora no Rio já viu várias vezes as autoridades dizendo que acabariam com o tráfico, ou o Exército sendo chamado e ocupando espaços, ou passeatas pedindo paz. Desta vez há várias coisas diferentes no ar. Vamos fazer um balanço aqui, até para fortalecer nossa esperança nesse momento difícil. Estamos mais conectados nesta cidade. Em todos os sentidos. A imprensa nunca chegou tão perto mostrando uma operação. Normalmente tudo se passava longe das câmeras e olhos dos repórteres. No fim a Polícia dava a versão dela que prevalecia. Depois um ou outro jornalista conseguia ouvir os moradores e as versões frequentemente eram diferentes. Desta vez a imprensa está lá. Pode ver, contar, e mostrar que é o nosso papel. O que possibilita isso em parte é o que veio acontecendo nos últimos anos no jornalismo e nas políticas públicas.
As UPPs quando libertam uma área da cidade abre alas para a imprensa. Até alguns anos atrás o jornalismo do Rio parecia cobrir bolhas, partes da cidade, em outras nem se entrava. Para entrar era preciso negociar com o tráfico. E isso era inaceitável. Outra forma era entrar com ONGs que trabalham nas favelas. Já fui a vários lugares com o Afroreggae e o Centro de Democratização da Informática. Hoje os jornalistas entram e saem de várias favelas ocupadas pelas UPPs. Isso ajuda a cobrir não apenas os momentos de tensão, mas o dia a dia, o cotidiano, a vida como ela é. E aí as favelas aparecem de forma diferente dos estigmas e estereótipos. A internet amplia enormemente a capacidade de comunicação e de ligação entre moradores de uma mesma cidade, dos bairros de classe média ou dos ricos, aos bairros chamados comunidades, onde ficam pobres .
Há iniciativas incríveis como a do jovem René que fez um jornalzinho no Alemão desde os 11 anos. Hoje ele tem 17 anos e o jornal tem 5.000 exemplares, tem anúncios do comércio local, ele é conhecido. O Voz da Comunidade é um sucesso impresso, na internet e agora no tuiter. O perfil @vozdacomunidade tinha ontem de manhã 180 seguidores, agora em que escrevo tem quase 2.000. Isso em um dia. O engraçado é que René @Rene_Silva_RJ que agora está com 3.000 seguidores diz no seu perfil que quer ser jornalista. Você já é menino, você já é. Continue mandando seus tuites, notas, fazendo seu jornal, e cresça. Sua torcida é grande, você construiu sua própria audiência.
Desta vez há mais apoio dos moradores à ação das forças de segurança. Tomara que dure e que a Polícia faça por merecer essa confiança. Há riscos, todos sabemos. Riscos de ser só mais um espetáculo, de que a parte podre da Polícia acabe tomando o terreno para si, outra chaga das várias que temos aqui no Rio. Riscos imensos de que um inocente seja atingido nessa guerra, por isso não basta superioridade numérica, equipamentos, união de forças, o estado precisa ter sempre estratégia e bom senso. Hoje há quem possa mediar. O Junior do AfroReggae não começou nisso ontem. Ele faz há anos negociação em áreas de conflitos. É experiente e respeitado. Foi chamado lá por traficantes, por moradores. Há mediadores treinados da própria Polícia. O que vai acontecer nas próximas horas no Alemão ninguém sabe. O local é imenso. Várias comunidades que foram crescendo e um dia se misturaram. Tempos atrás fui lá com os meninos do AfroReggae para fazer uma gravação. A ideia era o Junior ir para a redação do Globo e eu para o Alemão. Fizemos isso. Foi um dia em que aprendi muito andando, conversando, gravando em cima de uma laje onde se descortinava aquele mar de favelas. Vi jovens com fuzis, tão jovens, tão jovens! Subimos pelas ruelas, passei por local de vendas de drogas. E vi os trabalhadores indo para as obras do PAC. O poder público estava lá nas obras do PAC, mas não estava inteiro. Tanto que as obras de melhoria conviviam com o que não deveriam conviver. Hoje a Polícia e as Forças Armadas estão lá, nas bordas do imenso Complexo do Alemão. O que acontecerá esta noite? É um momento decisivo. Hoje a cidade está mais unida do que jamais esteve, pela internet, pelos avanços da política de segurança, pelos mesmos sonhos. Hoje todos os olhos - e nossos corações - estão no Alemão. O momento é dificil e riscos existem, mas nunca tivemos tanta esperança de que o país avance na direção que se quer: a de não haver territórios onde o poder público não possa entrar.
água-forte
À beira de você, toda a paisagem
se resume a isto: nenhuma urgência
que seu rosto brilhe, mas ele arde
como se quisesse compensar em luz
o seu silêncio. Gastaria a vida assim,
à orla do céu que reflecte
na água quieta que rola no intervalo
entre nós. Demoro-me aqui,
à roda desse engano,
dessa infinitamente triste alegria.
E quanto mais me sinto afogar,
mais permaneço,
se o amador a nadar para fora
prefere morrer na coisa amada.
In, Cinemateca, Cia das Letras