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Manuel Wiborg: estamos a viver o fim de uma civilização

Published29 Aug 2015

Tags Manuel Wiborg Vou lá Cisitar Pastores

© Nuno Patinho

Manuel Wiborg encena e interpreta a adaptação ao palco da obra Vou Lá Visitar Pastores, de Ruy Duarte de Carvalho. O actor falou com o Jornal de Negócios sobre o projecto, que estreou em 2003, na Culturgest, e sobre o seu percurso.

"Não me peçam nem que ajude a domesticá-los nem que faça causa da preservação dos seus modelos e sistemas, que dessa maneira não seriam os deles". Este é um excerto do texto "Vou lá Visitar Pastores", adaptado da obra de Ruy Duarte de Carvalho, que fala sobre os pastores Kuvale, do sudoeste de Angola. "Ele quer mostrar que é ali que está a verdadeira população de Angola. E não nos dirigentes políticos que acumulam carros nos jardins", diz o actor e encenador Manuel Wiborg, que vai repor a peça nos dias 6,7 e 8 Setembro no anfiteatro ao ar livre da Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito do programa "Próximo Futuro". Criada em 2004, a peça estreou na Culturgest e foi adaptada, então, por Rui Guilherme Lopes. Agora, ao texto original, Manuel Wiborg acrescenta fragmentos das "Mensagens em Swakopmund", textos . pessoais de Ruy Duarte de Carvalho, escritos naquela cidade da Namíbia, onde morre em 2010. Manuel Wiborg, actor e encenador de teatro, cinema e televisão, dá voz a este homem que muito admira.


A peça "Vou lá Visitar Pastores", uma adaptação da obra de Ruy Duarte de Carvalho, foi criada em 2004 a convite do António Pinto Ribeiro para o festival "Mais a Sul", na Culturgest. Quando li o livro, fiquei encantado. A obra não é só um romance, não é só um livro de antropologia, não é só um livro de filosofia, nao é só um livro de poesia. A obra é tudo isso. O Ruy Duarte de Carvalho não era apenas escritor e poeta. Ele era antropólogo, era realizador, era pintor. Ele fotografava, ele recolhia materiais e fez um trabalho de fundo junto dos pastores Kuvale, do sudoeste de Angola, onde passou muitos anos, e onde, no fundo, ele se exilou. No fim da vida, ele sai do Namibe, antiga Moçâmedes, atravessa a fronteira para a Namíbia e instala-se em Swakopmund, onde fica a viver, por cima de um centro de saúde. Ele já estava muito doente. Morre quando volta da ilha de Santa Helena. Era o sonho dele, ir a Santa Helena. No regresso, do aeroporto da Cidade do Cabo, ele telefona ao filho, Luhuna Carvalho, e à mãe do filho, Rute Magalhães. Morre nessa noite, em Swakopmund.

Entre 2009 e 2010, o Ruy Duarte de Carvalho envia vários "e-mails" à Rute. São mensagens em tom pessoal, não é o Ruy a falar dos pastores, não é o Ruy antropólogo, não é o Ruy escritor, não é o Ruy poeta. E o Ruy pessoa, é o Ruy homem. Ele sente a morte próxima e fala sobre o mundo, sobre a vida, sobre o estar aqui. Para mim, voltar a fazer este espectáculo é, no fundo, fazer-lhe uma homenagem e, por isso, vou intercalar o texto "Vou lá Visitar Pastores" com alguns excertos destes textos, chamados "Mensagens de Swakopmund", que estão publicados na revista Granta. A obra do Ruy tem um grande peso naquela zona de Angola, naquela gente e, sobretudo, tem um peso gigantesco na obra e na vida do Ruy. A Rute mostrou-me umas fotografias lindíssimas. Fizeram-lhe o funeral no Virei, onde ele esteve muito tempo com os pastores. O Ruy tem uma campa com pedras e depois tem uma lápide que diz: "Vou lá Visitar Pastores".

De certa forma, ele quer provar que aquelas sociedades nómadas, embora sejam vistas como anacrónicas, têm um certo equilibro económico, social e religioso. No fundo, quer mostrar que a população original de Angola está naqueles pastores nómadas. Está ali verdadeira população de Angola. E não nos dirigentes políticos que acumulam carros nos jardins. Ele quer mostrar que progresso e prosperidade não são a mesma coisa. Ali, a quantidade de bois significa maior riqueza do que um salário comum em Angola. Naquela organização muito própria, os pastores são muito mais ricos do que integrados num outro sistema.

Na altura da descolonização, eu era miúdo e tinha apenas uma vaga ideia do que era África. Os meus tios viviam em Moçambique e alguns dos meus primos, quando regressaram, ficaram a viver connosco. Passámos a serl3oul41á em casa. Eu tenho nove irmãos... Mas só a partir de 1997 é que comecei, realmente, a debruçar-me sobre os assuntos de África. A primeira peça que encenei chamava-se "Hotel Orpheu", foi escrita por um negro, Gabriel Gbadamosi, filho de pai nigeriano e mãe irlandesa. E uma peça a puxar à negritude, nada amiga do branco. Depois, viajei pela África portuguesa, falei com muita gente e fiquei com a sensação de que há ódios antigos que não se conseguem resolver. Como o rancor dos militares brancos que combateram em África. Ou a nostalgia dos brancos que viveram lá e sentiam que aquela era a terra deles. Também vejo ódio nos negros que estão no poder e que estão sempre a dizer que os brancos estragaram, que os brancos fizeram. Que estão constantemente a puxar esses galões para se manterem no poder. Mas, na África portuguesa, o negro que passa fome diz: quem me dera que os portugueses organizassem isto. Eu nasci em 68, tinha seis anos em 1974, só me apercebi do 25 de Abril porque não fui à escola e passei o dia na varanda à espera de ver passar aviões. Só mais tarde vim a saber o que era. O 25 de Abril não se cumpriu totalmente. Claro que há uma libertação, as pessoas passaram a ter liberdade de expressão, isso é inegável. Mas, de certa maneira, não há uma mudança radical no país. Suponho que o 25 de Abril foi uma revolução que ficou aquém do que deveria ter ficado. Falta-nos muita coisa e falta-nos, sobretudo, educação. Educação popular. Participação popular. Intervenção cívica, espírito crítico.

Estou pela democracia, claro, mas por uma democracia participativa, e nós hoje assistimos à falência da democracia. Nós, mundo. Estamos de tal forma a perder identidade que é difícil dizer o que somos. O Jean-Luc Nancy diz que aquilo que o ser humano tem em comum é o não ter nada em comum. Eu sempre me senti um bocadinho diferente dos meus amigos, dos meus colegas, em alguns gostos e na maneira de ver as coisas. Eu e os meus irmãos tivemos uma educação muito artística. Os meus pais não eram artistas, mas gostavam muito de arte. O meu pai - Pedro Luís Wiborg de Carvalho - era publicitário, fundou as agências Sistema e Storm, associadas à multinacional Saatchi & Saatchi - e a minha mãe - Maria Teresa Afonso dos Santos Ferreira - era doméstica, mas tinha um trabalhinho, era escrutinadora do Totobola. Trabalhava à segunda-feira. Ela lia muito, via teatro. Levou-me a ver Pina Bausch, os filmes do Truffaut, levou-me à ópera ao São Carlos. Entrei para filosofia e, nessa altura, criei a banda de rock - Os Refundidos - com uns colegas, eu era vocalista e letrista. Acabei por sair do curso e fui trabalhar com o meu pai. Eu só pensava na banda. Mas eu era muito tímido, ficava muito quieto, agarrado ao microfone. Para me desinibir enquanto performer, meti-me num curso de teatro. Isto coincide com a morte dos meus pais. O meu pai morre com 54 anos, a minha mãe morre um ano depois. Eles nunca souberam que eu tinha entrado no teatro... Fiz um curso no Teatro Espaço e descobri que era aquilo que eu queria. Estive no Instituto de Ficção, Investigação e Criação Teatral (IFICT), saltei para o Conservatório e começo logo a trabalhar. Já não consegui acabar o Conservatório...

Trabalhei bastante com o Jorge Silva Melo, em peças como "Greensleeves", "Coitado do Jorge" e "António, Um Rapaz de Lisboa". Fiz o "Prometeu" ("Prometeu Rascunhos" e "Prometeu Agrilhoado/Libertado"). Depois criei a minha companhia, a AP A, encerrei-a em 2008. Em 2013, fiz "Sou o Vento", de Jon Fosse, e "O Meu Jantar com o André", de Wallace Shawn e André Gregory. Este ano, encenei "O Pequeno Eyolf', de Henrik Ibsen, e, para o ano, vou encenar uma peça do Wallace Shawn chamada "The Designated Mourner" e um monólogo do Jon Fosse, "O Homem da Guitarra". Entretanto, fundei a associação Teatro do Interior, na zona centro, no Pinhal Interior Norte. Eu tenho uma casa na Serra da Lousa, naquelas aldeias de xisto, e quero fazer um projecto com várias câmaras locais. Preciso mesmo de projectos que me façam mover. Apeça do Wallace Shawn fala de um país ditatorial onde um poeta brilhante é assassinado, onde há um professor de literatura que já não está tão interessado na literatura, ele quer é sobreviver. E o sobrevivente. O que tem muito a ver com época que estamos a viver, com o fim de uma civilização e de uma cultura. E o início de uma nova barbárie. Tenho muito medo de uma guerra mundial. Mas acho sempre que a humanidade tem o poder de renascer.