Futuro Imediatamente a seguir
Published10 Jul 2013
Futuro Imediatamente a Seguir
Uma imagem do filme Elelwani, em que a prometida inicia, a coberto de um manto que a envolve integralmente, o percurso que a leva a tomar o seu destino ao lado do rei Venda (com quem deve casar-se para retribuir o investimento que os chefes tribais tinham aceite fazer na sua educação no estrangeiro) remete-nos para a família europeia. Aquele cortejo hierarquicamente estratificado no percurso até ao palácio, pés nus sobre a erva a percorrer uma diagonal cujo sentido fica algures justificado pelos protocolos reais e pelas vozes que reproduzem músicas de significado indecifrável, fazia lembrar os grandes planos mergulhados sobre a tradição quase exageradamente encenada a que o realizador japonês Akira Kurosawa nos habituou no final da sua carreira. Era quando os seus filmes se sucediam uns aos outros com uma espécie de pressa indiferente aos circuitos de distribuição internacionais, com o fito implícito de deixar ao universo o legado de um mundo em extinção.
Nada que fosse indiferente, noutra latitude, ao propósito do polaco Tadeusz Kantor, quando trazia a Lisboa, e não por acaso aos Encontros Acarte da Fundação Gulbenkian (1989), o Teatro Tricot de Cracóvia, uma família desgarrada que tinha sido desfeita pela II Guerra Mundial e com cuja estreia em Lisboa, Kantor se despediu de uma carreira longa (Je ne reviandrais jamais), morrendo poucos meses depois. Parece que nada tem a ver com este retomar da tradição Venda do norte da África do Sul, província do Limpopo, retratada pelo realizador Ntshaveni wa Luruli na Cinemateca do Próximo Futuro, mas tem. Elelwani é um filme que encerra uma espécie de catálogo das categorias inaceitáveis para o mundo ocidental, que aceitou recentemente renunciar aos dilemas da sua cultura – porque se permite ignorá-los e não os reconhecer enquanto tal - e se posiciona numa variada mas persistente sobranceria que dispensa a espessura do mundo. O realizador Ntshaveni wa Luruli, em Elelwani, faz o contrário: mostra que, mesmo na atualidade, a altivez que os universos culturais reservam sentir uns perante os outros guarda ainda a capacidade de perpetuar a intolerância individual perante o outro, mesmo quando o procuram o outro. Permite, portanto, a reserva. Porém, no filme isto tem o propósito programático de indicar, através do personagem principal, que seguir o caminho que se tem de seguir, por mais absurdo que possa parecer, é ainda uma possibilidade valente, a única que permite encontrar o caminho da libertação do fardo das imposições da cultura. Uma boa aposta, ainda que difícil de seguir.
A verdade é que estamos a falar da África do Sul de um universal Nelson Mandela presentemente entre a vida e a morte. A África do Sul do Presidente Jacob Zuma a tentar capitalizar este final de ciclo de ouro na sua preparação para um segundo mandato presidencial à frente do ANC (eleições em 2014). A África do Sul de um intocável Black Economic Empowerment, que está a provar ser mais eficaz a espalhar a incerteza pelos diferentes grupos étnicos que compõem a saudosa Nação Arco-Íris que Mandela quis legar, do que a efetivamente criar e distribuir riqueza entre os negros. O desemprego cresceu dos anos 90 para cá, o crescimento económico abrandou, ironicamente, porque a África do Sul é a mais bem sucedida economia do continente com melhores e mais variadas parcerias económicas. Esta é a realidade retratada à lupa das especificidades dos filmes The African Cypher, Otelo Burning, Gangster Film, Rewind e Material, os registos que foram brilhantemente reunidos pelka comissária Joan Legalamitlwa para o Próximo Futuro 2013. Na minha opinião, constituiram o coração multicultural e multilingue deste programa que se anunciou versar sobre o Sul de África. Sul de África com notas estendidas a Moçambique, prresença de Angola, do Botwsana, do Zimbabwe e do Uganda, uma extensão ao Chile e a compreensão geograficamente incoerente da Áfica ocidental através dos indiscutíveis Encontros de Fotografia de Bamako (9ª edição, Mali).
Olhando para uma programação cultural como a do Próximo Futuro 2013 – estruturada entre as linguagens do cinema, das artes visuais e das artes performativas -, pergunto-me (como imagino que o programador se tenha questionado) quem estará realmente a olhar para o mapa de África para pensar nos 15 membros da SADEC (Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral) e o que eles poderão trazer-nos de novo na sua riquíssima e irresistível diversidade?
Enquanto público europeu, habituados à variedade, estamos programados para um quantum de diferença e toleramos uma determinada dose de estranheza, mesmo quando adoramos evocar a vantagem que nos concedeu a nossa experiência dos séculos passados. Não quer dizer que África seja uma mancha indiferenciada em que tudo seja 100% diferente da Europa ou 100% igual a si próprio. Mas a verdade é que, mesmo quando não resistimos à dança, continuamos a ter dificuldade em admitir por que é que a África profunda da banda tanzaniana Jagwa Music (Dar es Salam) é bastante menos friendly do que a banda ganesa Konkoma, que integra músicos britânicos e grande dose de inspiração jazzística...
Falamos de quê quando falamos do Sul de África? Falamos de culturas desconhecidas e longínquas da imaginação ocidental ou substancialmente distorcidas pelas experências individuais dos europeus que viveram em África. Reconnheça-se que o Próximo Futuro fez um notável esforço de aproximação, em particular por meio da Festa da Literatura e do Pensamento que incluiu quatro conversas sobre o Estado das Artes, Literatura, Pensamento e Política, e Poesia. Qual é o efeito destas conversas relativamente circunscritas (como o é, no limite, toda a programação)? Desejavelmente, demonstrar que toda a atualidade pensa e que a globalização tem uma vantagem inegável: quando tentamos fugir à atualidade ou negar a realidade, nota-se! Os outros veem e não fica bem a ninguém continuar a sustentar teimosamente a prevalência de um tipo de pensamento sobre outro.
Pessoalmente, acho que o maior legado desta edição 2013 do Próximo Futuro foi deixar-nos (ao público) perante a perplexidade do que não conseguimos apreender desta vez, um anúncio generoso de que, talvez, consigamos ultrapassar a distância da próxima vez. Este deveria ter sido a proposta de todas as programações das últimas décadas, mesmo quando imaginámos generosamente que tinhamos, lisboetas, alguma coisa a ver com o pós-guerra da Polónia, o pós-apartheid da África do Sul ou o pós-colonialismo dos outros países europeus. Será que todos os espetáculos, debates, filmes e exposições foram definitivamente esclarecedores? Desejamos que não. Uma programação consciente não propõe respostas, apresenta pistas, para tentar manter os espetadores mais atentos nesta inquietação que promove a descoberta. As respostas definitivas são mais capazes de provocar sono...
Cristina Peres
Lisboa, Julho 2013