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Fragmentos de uma cidade impossível

Cidade do México

São 7:00h da manhã. A Rádio Panorama anuncia vários bloqueios no acesso ao centro da cidade e a circular periférica está muito lenta. São três minutos sobre o trânsito informando que este está lento, muito lento. O táxi avança devagar e pára de 100 em 100 metros. Através da janela pode ver-se um condutor lendo o jornal ao volante. Na fila do lado esquerdo, uma senhora aproveita as paragens do carro para arranjar as sobrancelhas. Avançarão vagarosamente outros carros, motos, camiões, e é todo um conjunto de actividades que acontecem dentro dos veículos antes de se começar a jornada de trabalho: uma mãe amamenta um bebé no banco traseiro, um condutor de camião come um peixe seco à janela, um rapaz de empresa de entregas bebe de um termo florido, uma senhora tricota sempre que o carro pára, dois condutores em faixas paralelas conversam ao longo do percurso, ajeitando as suas viaturas de modo a mantê-las lado a lado, um homem chora ao volante. A Rádio Panorama informa que uma lei impondo exercícios físicos diários em todas as escolas do país foi promulgada de modo a combater a obesidade, e o número de sequestros aumentou em relação ao ano anterior, sendo estimado em mais de 1400 no ano de 2009.

Como vai ser possível às pessoas deslocarem-se nesta cidade daqui a 10 anos?

A cidade tem 28 milhões de habitantes. Pontes, viadutos, aquedutos, avenidas que sucedem a avenidas, que por sua vez sucedem a vias de circulação periférica, que se sucedem a outras vias, numa rede de milhares de kms no seu interior. É humanamente impossível ter dela uma visão geral; na melhor das hipóteses ficamo-nos pela apreensão espacial de dois ou três bairros, de uma visão particular desta cidade infinita.

Numa pequena praça, ao fim da tarde, uma mexicana de cabelo negro e trança atada com uma fita vermelha vende ramos de alcachofras e sorri.

As primeiras páginas dos jornais têm invariavelmente nas suas manchetes sequestros, assassinatos, raptos, fuzilamentos, que as fotos ilustram. Os cartéis têm um poder de armas superior à polícia, controlam as fronteiras, controlam sectores da cidade e ditam as leis. Que projectos políticos, sociais, urbanos e económicos poderão ter ainda alguma eficácia para retardar este processo de uma cidade-refém?

Carros negros de alta cilindrada, de vidros fumados, percorrem as ruas da cidade, assíduas vezes escoltados por outros carros negros de alta cilindrada, de vidros fumados.

Tapetes de folhas de jacarandás tapam os passeios que se transformam em passeios roxos.

Há uma cultura da morte latente nesta cidade: nas conversas, nas canções, no vestuário, nas narrativas literárias, nos ritos escondidos.

Há um bairro cujos nomes das ruas são uma elegia ao que de mais humanista produziu o mundo. As ruas chamam-se: Aristóteles, Calderon de la Barca, Horacio, Tasso, Hegel, Petrarca, Arquimedes, Júlio Verne, Galileu, Temistocles, Newton e muitos mais. Todas elas acabam rematadas pelo glamour da Avenida dos Campos Elísios e pelo universalismo da Av. Mahatma Gandhi.

A cidade tem dezenas de museus excelentes e uma história rara de literatura e de pintura.

Nas ruas transversais do centro filas de "sem-abrigo" estendem-se ao longo dos passeios, numa imundíce inaceitável.

Miami é um fantasma permanente: para os que se transportam nos carros negros de grande cilindrada e passam férias nas suas casas em Miami, e para os imigrantes que sonham poder entrar em Miami e assim entrar na América.

Cidade do México, uma cidade fortaleza, uma cidade murada no interior, uma cidade prisão, uma cidade-refém.

apr