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"Como escrever sobre África" de Binyavanga Wainaina

Published12 Sep 2014

Binyavanga Wainaina é um escritor queniano, fundador da revista literária Kwani? (que significa 'o que se passa?') e foi distinguido com o Caine Prize for African Writing em 2002. Autor da obra One Day I Will Write About This Place: A Memoir, foi considerado uma das 100 pessoas mais influentes em 2014 pela Revista Time , onde a escritora Chimamanda Ngozi Adichie o considerou "the memoirist with a mission". Homossexual assumido, tem sido uma voz activa na defesa dos direitos gays, e também contra as representações estereotipadas de África e dos africanos, tendo escrito um texto antológico sobre o tema em 2005. 

COMO ESCREVER SOBRE ÁFRICA

Use sempre a palavra “África”, ou “Escuridão”, ou “Safari” no título. Os subtítulos podem incluir palavras como “Zanzibar”, “massai ”, “zulu”, “Zambeze”, “Congo”, “Nilo”, “grande”, “céu”, “sombra”, “tambor”, “sol” ou “coisas do passado”. Use também palavras como “guerrilha”, “intemporal”, “primordial” e “tribal”. Note que a palavra “povo” refere-se aos africanos que não são negros, embora os africanos negros sejam designados por “o povo”.

 

Nunca use a imagem de um africano bem-sucedido na sobrecapa do livro, a não ser que tenha ganho o prémio Nobel. Ao invés, use imagens deste género: uma AK-47, costelas proeminentes e peitos nus. Se tiver mesmo de ter um africano na capa, certifique-se de que este enverga um traje massai, ou zulu ou dogon.

Ao escrever sobre África, trate-a como se fosse um país. Quente e poeirento, com pastagens ondulantes, grandes manadas de animais – e pessoas altas e magras a morrer à fome. Ou, então, quente e húmido – com pessoas de estatura muito pequena que comem primatas. Não se perca em descrições pormenorizadas. África é grande: tem cinquenta e quatro países, e 900 milhões de pessoas demasiado ocupadas (a morrer à fome, a morrer, em guerra e a emigrar) para ler o seu livro. O continente está cheio de desertos, selvas, planaltos, savanas e muitas outras coisas, mas quem for ler o seu livro não se interessa por nada disso – portanto, mantenha as descrições num registo romântico, evocativo e sem particularismos.

 

Assegure-se de que mostra que os Africanos têm a música e o ritmo bem dentro da alma e que comem coisas que nenhum outro humano comeria. Não fale em arroz, nem em carne de vaca, nem em trigo; miolos de macaco é cozinha africana de eleição, tal como cabra, cobra, vermes, lagartas e todos os géneros de caça. Mostre à saciedade que é capaz de comer este tipo de comida sem pestanejar e descreva como aprendeu a gostar dela – porque se preocupa.

 

As cenas domésticas normais, o amor entre africanos (a não ser que haja uma morte), quaisquer referências a escritores ou intelectuais africanos, a crianças que vão à escola e não sofrem de pústulas, de Ébola ou de mutilação genital feminina constituem assutos tabu.

 

Adote, do início ao fim do livro, um tom de surdina, de cumplicidade com os leitores, e uma inflexão entristecida de “eu-estava-à-espera-de-tanto.” Defina, logo à partida, que o seu liberalismo é impecável e diga, quase no início, o quanto ama África, como se apaixonou pelo continente e que não pode viver sem ele. África é o único continente que pode amar – tire partido disso. Se for um homem, abandone-se nas suas quentes florestas virgens. Se for uma mulher, trate África como se fosse um homem de balalaica que desaparece no pôr-do-sol. África deve ser lamentada, adorada ou dominada. Qualquer que seja o ponto de vista que adote, não se esqueça de transmitir, de forma veemente, a sensação de que, sem a sua intervenção e o seu importantíssimo livro, África estaria condenada.

 

As personagens africanas podem ser: guerreiros nus; criados leais; adivinhos e oráculos; sábios anciãos que vivem num esplendor eremítico – ou políticos corruptos, guias turísticos incompetentes e polígamos, ou prostitutas com quem dormiu. Os criados leais comportam-se sempre como se tivessem sete anos e precisam de uma mão firme; têm medo de cobras, são bons para as crianças e estão sempre a envolvê-lo nos seus complexos dramas familiares. Os sábios anciãos são sempre de tribos nobres (não das que andam à caça de dinheiro, como os Gikuyus, os Igbos ou os Shonas). Têm olhos remelosos e são íntimos da Terra. Os africanos modernos são gordos que roubam e trabalham nas repartições de vistos e se recusam a dar autorizações de trabalho aos ocidentais qualificados que se preocupam verdadeiramente com África. São inimigos do desenvolvimento, servem-se sempre do seu emprego no estado para dificultar, a expatriados pragmáticos e de bom coração, o estabelecimento de ONG’s e de áreas protegidas. Também podem ser intelectuais educados em Oxford que se tornaram políticos carniceiros que vestem fatos dos alfaiates de Savile Row. São canibais que gostam de champanhe Cristal e cujas mães são as abastadas feiticeiras-médicas que de facto governam o país.

 

Entre as suas personagens, tem de figurar sempre a africana que morre à fome e vagueia pelo campo de refugiados quase nua, confiando na generosidade do ocidente. Os filhos têm moscas nas pálpebras e barrigas inchadas; ela, seios achatados e vazios. Tem de parecer absolutamente impotente. Não pode ter passado ou história – porque esta diversão arruinaria o momento dramático. Se gemer, tanto melhor. Num diálogo, nunca deverá dizer nada sobre si própria, a não ser para falar do seu (indizível) sofrimento. Obrigatória é a inclusão de uma mulher maternal e afectuosa, de riso fácil, que se preocupa com o bem-estar do autor ou autora. Chame-lhe simplesmente Mama. Os filhos dela são todos delinquentes. Todas estas personagens devem andar à volta do herói principal de modo a fazê-lo aparecer bem na fotografia. Este herói pode ensiná-los, dar-lhes banho e dar-lhes de comer; anda com montes de bebés ao colo e já viu a Morte. O seu herói é você mesmo (se se tratar de uma reportagem), ou uma linda e trágica celebridade (ou aristocrata) internacional que agora se preocupa com os animais (se se tratar de ficção).

 

 No ocidente, entre as más personagens, podem constar filhos de ministros de governos conservadores, Afrikanders, empregados do Banco Mundial. Se abordar a a questão da exploração por parte de estrangeiros, fale nos comerciantes chineses e indianos. Culpe o ocidente pela situação de África, mas não seja muito específico.

 

As pinceladas largas surtem um bom efeito no livro. Evite personagens africanas que riam, que lutem em prol da educação dos filhos, ou que simplesmente improvisem em circunstâncias mundanas. Ponha-as a explicar algo sobre a Europa ou a América em África. As personagens africanas devem ser coloridas, exóticas, maiores do que a vida – mas vazias por dentro, sem diálogo, nem conflitos ou resoluções para as suas histórias, sem profundidade nem subterfúgios que confundam a causa.

 

Descreva pormenorizadamente os peitos nus (jovens, velhos, conservadores, acabados de violar, grandes, pequenos), os genitais mutilados ou os genitais desenvolvidos. Ou qualquer espécie de genitais. E cadáveres. Ou, melhor ainda, cadáveres nus. E, especialmente, cadáveres nus em putrefacção. Lembre-se disto: na sua obra, as pessoas apresentadas em toda a sua sordidez e miséria serão referidas como “a verdadeira África” – e é isso o que quer na sobrecapa do seu livro. Não se sinta enojado por isso: estará a tentar ajudá-las a obter a ajuda do ocidente. Ao escrever sobre África, o maior tabu é descrever – ou mostrar – a morte ou o sofrimento de gente branca.

 

Ao invés, os animais devem ser tratados como personagens bem torneadas e de personalidades complexas. Falam (ou grunhem, enquanto agitam orgulhosamente as jubas) e têm nomes, ambições e desejos. Também têm valores familiares: estão a ver como os leões ensinam as crias? Os elefantes são protectores e são ou boas feministas ou dignos patriarcas. Os gorilas também. Nunca, mas nunca, diga qualquer coisa de negativo sobre elefantes ou gorilas. Os elefantes podem atacar a propriedade das pessoas, destruir-lhes as colheitas e até matá-las. Esteja sempre do lado dos elefantes. Os grandes felinos têm os sotaques das escolas privadas. As hienas são um bom alvo de críticas e têm vagos sotaques do Médio Oriente. Pode retratar os africanos de baixa estatura que vivam na selva ou no deserto com bonomia – a não ser que estejam em conflito com elefantes, chimpanzés ou gorilas: nesse caso, são puros diabos.

 

Depois das celebridades activistas e dos trabalhadores da ajuda humanitária, as pessoas mais importantes de África são os conservacionistas. Não as ofenda, porque precisa que elas o convidem para o seu rancho de caça ou área protegida de 30 000 hectares – e esse é o único meio de que dispõe para conseguir entrevistar as celebridades activistas. Muitas vezes, a imagem de um conservacionista com ar de herói faz milagres pelas vendas. Todos os brancos bronzeados e vestidos de caqui que tenham tido um antílope como animal de estimação ou uma quinta são conservacionistas que cuidam da rica herança Africana. Quando os entrevistar, não faça quaisquer perguntas sobre financiamentos, nem pergunte quanto dinheiro fazem com a caça. E jamais pergunte quanto pagam aos empregados.

 

Os leitores ficarão desiludidos se não lhes falar da luz de África. E de pores-do-sol – o pôr-do-sol africano é um must. É sempre grande e vermelho. Há sempre um céu enorme. Uma imensidão de espaços desertos, tal como de animais selvagens, é essencial – África é o continente dos vastos espaços vazios. Quando escrever sobre o flagelo da flora e da fauna, não se esqueça de dizer que o continente africano se encontra sobrepovoado. Quando a sua personagem principal estiver a viver no deserto ou na selva com indígenas (uns baixinhos quaisquer), não tem mal nenhum referir que África foi severamente dizimada tanto pela SIDA como pela GUERRA (use maiúsculas).

 

Necessita igualmente de um bar-discoteca chamado “Tropicana”, que seja frequentado por mercenários, maléficos novos-ricos africanos, prostitutas, guerrilheiros e expatriados.

Acabe sempre o seu livro com uma citação de Nelson Mandela sobre arco-íris ou renascimentos. Porque você se preocupa.

 

Binyavanga Wainaina

Tradução de Manuel Ferreira Chaves do artigo "How to Write About Africa", originalmente publicado na Granta 92, 2005